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3 de fevereiro de 2014

Mandamentos detetivescos

Inaugurando uma série de artigos congêneres aos que fiz para A Quarta Dimensão (sobre o Tempo em antecipação a um livro com esse tema), este artigo trata da tentativa de alguns autores de normatizar a ficção detetivesca.

Mencionei na postagem anterior sobre meu próximo livro que na busca por uma fórmula para contos policiais esbarrei em normas ou mandamentos para estórias de detetive, que não tentei seguir, apesar de espontaneamente ter me aproximado de várias delas.

Após as estórias de detetive se estabelecerem como gênero e instigar as imaginações e pretensões de seus fãs, uma certa homogeneização ocorreu espontaneamente, fruto da crítica dos apreciadores dos mistérios legítimos, que esperavam tramas que respeitassem a inteligência do leitor.

A estória de detetive tem como principal atrativo o desenrolar de um mistério, e nas suas origens era essencial que não apenas houvesse esse desenrolar, como também que ao leitor fosse permitido participar da investigação. Ao descobrir as pistas, tecer considerações e traçar trajetórias, o leitor acompanhava o detetive e podia resolver o caso junto com ele, ou mesmo antes dele.

Procurando talvez uma consolidação do que deveria ser considerada uma estória de detetive respeitável, são dignos de citação dois esforços em uma sistematização do gênero.

S. S. Van Dine
Em 1928, apareceram publicadas na revista American Magazine as Vinte regras para escrever ficção de detetive, de autoria de S. S. Van Dine, pseudônimo de Willard Huntington Wright (1888-1939). Ele tinha plena legitimidade para escrever estas regras: dois anos antes ele havia apresentado ao mundo o esnobe Philo Vance em "O Caso Benson", detetive que investigaria ainda outros 11 casos e alcançaria ainda o cinema e o rádio. 

(Texto original obtido de http://gaslight.mtroyal.ca/vandine.htm)

"A estória de detetive é uma espécie de jogo intelectual. É mais — é um evento esportivo. E para escrever estórias de detetive há leis definidas — não escritas, talvez, mas certamente vinculantes; e todo elaborador de mistérios literários respeitável e que se respeite será fiel a elas. Com isso, então, está um certo Credo, baseado parcialmente na prática de todos os grandes escritores de estórias de detetive, e parcialmente nas exigências da consciência íntima do autor honesto. A ver:

1. O leitor teve ter igual oportunidade à do detetive para solucionar o mistério. Todas as pistas devem ser claramente mencionadas e descritas.

2. Nenhum truque ou engano intencional pode ser aplicado no leitor outro que aqueles lançados legitimamente pelo criminoso no próprio detetive.

3. Não pode haver interesse amoroso. O que se pretende é trazer um criminoso à justiça, não trazer um casal apaixonado ao altar matrimonial.

4. O próprio detetive, ou um dos investigadores oficiais, nunca devem acabar sendo o culpado. Isto é trapaça suja, semelhante a oferecer a alguém um centavo brilhante como uma moeda de ouro. É falsidade ideológica.

5. O culpado deve ser determinado por deduções lógicas — não por acidente ou coincidência ou confissão desmotivada. Para resolver um problema criminal desta última maneira é como enviar o leitor em uma falsa busca deliberada, e então dizer-lhe, após ter falhado, que você tinha o objeto da busca na sua manga todo o tempo. Tal autor não é melhor que um pregador de peças.

6. O romance de detetive deve ter um detetive; e um detetive não é um detetive a menos que detecte. Sua função é colher pistas que eventualmente levarão à pessoa que fez o trabalho sujo no primeiro capítulo; e se o detetive não alcança suas conclusões através de uma análise daquelas pistas, ele resolveu o problema como o aluno que pega sua resposta de uma cola.

7. Simplesmente deve haver um cadáver em um romance de detetive, e quanto mais morto o cadáver, melhor. Nenhum crime inferior ao homicídio será suficiente. Trezentas páginas é demais incômodo para um crime que não o assassinato. Afinal, o incômodo e gasto de energia do leitor deve ser recompensado.
   
8. O problema do crime deve ser resolvido por meios estritamente naturalísticos. Métodos de descobrir a verdade como escrita em lousa, tábuas de Ouija, leitura da mente, séances espiritualistas, contemplar cristais, e semelhantes, são tabu. Um leitor tem uma chance quando compara sua cabeça com um detetive racionalista, mas se ele tem que competir com o mundo dos espíritos e correr pela quarta dimensão de metafísica, ele é derrotado ab initio.

9. Deve haver apenas um detetive — isto é, um protagonista de dedução — um deus ex machina. Trazer as mentes de três ou quatro, ou às vezes uma gangue de detetives sobre um problema, não é apenas dispersar o interesse e quebrar a direta linha da lógica, mas ganhar vantagem injusta contra o leitor. Se há mais de um detetive o leitor não sabe quem é seu codedutor. É como fazer o leitor correr contra um time de revezamento.

10. O culpado deve acabar sendo uma pessoa que representou um papel mais ou menos proeminente na estória — isto é, uma pessoa com quem o leitor é familiar e em quem tem interesse.

11. Um empregado não deve ser escolhido pelo autor como o culpado. Isto é esmolar por uma pergunta nobre. É uma solução fácil demais. O culpado deve ser uma pessoa decididamente merecedora — uma que não cairia ordinariamente sob suspeita.

12. Deve haver apenas um culpado, não importam quantos assassinatos são cometidos. O culpado pode, é claro, ter um ajudante menor ou um co-conspirador; mas o ônus integral deve cair sobre um par de ombros: à inteira indignação do leitor deve ser permitida cair sobre uma única alma negra.

13. Sociedades secretas, camorras, máfias, et al, não têm lugar em uma estória de detetive. Um assassinato fascinante e verdadeiramente belo é estragado sem remédio por qualquer culpabilidade em atacado. É certo que ao assassino em um romance de detetive deve ser dado uma chance justa; mas é ir longe demais conceder-lhe uma sociedade secreta na qual se recolher. Nenhum asassino de alta classe que se respeite quereria tais condições.

14. O método de assassinato, e os meios de detectá-lo, devem ser racionais e científicos. Ou seja, pseudo-ciência e formas puramente imaginativos ou especulativos não serão tolerados no roman policier. Uma vez que o autor decola para o reino da fantasia, à maneira de Júlio Verne, ele está fora dos limites da ficção de detetive, desbravando as fronteiras não mapeadas da aventura.

15. A verdade do problema deve a todo tempo ser aparente — desde que o leitor seja sagaz o suficiente para vê-la. Por isto quero dizer que se o leitor, após descobrir a explicação para o crime, relesse o livro, ele veria que a solução estava, de certa maneira, olhando-o bem na cara — que todas as pintas apontavam para o culpado — e que, se ele tivesse sido tão esperto quanto o detetive, ele poderia ter resolvido o mistério ele mesmo sem continuar até o capítulo final. Que o leitor esperto às vezes resolve o problema assim não é necessário dizer.

16. Um romance de detetive não deve conter longas passagens descritivas, nem flertes literários com questões paralelas, nem análises de personagem sutilmente trabalhadas, nem preocupações "atmosféricas". Tais questões não têm lugar vital em um registro de crime e dedução. Eles contém a ação e introduzem temas irrelevantes ao propósito principal, que é apresentar um problema, analisá-lo, e trazê-lo a uma conclusão bem-sucedida. Para ser bem claro: é preciso haver uma descritividade e delineação de personagem suficiente para dar verossimilhança ao romance.

17. Um criminoso profissional nunca deve arcar com a culpa de um crime em uma estória de detetive. Crimes por arrombadores e bandidos são a província de departamentos de polícia — não de autores e brilhantes detetives amadores. Um crime realmente fascinante é um cometido pelo pilar de uma igreja, ou por uma costureira famosa por suas caridades.

18. O crime em uma estória de detetive nunca deve acabar sendo um acidente ou um suicídio. Concluir uma odisseia de investigação com tal anti-clímax é enganar o confiante e bondoso leitor.

19. Os motivos para todos os crimes em estórias de detetive devem ser pessoais. Tramas internacionais e políticas de guerra pertencem a uma categoria diferente de ficção — em contos de espionagem, por exemplo. Mas uma estória de assassinato deve ser mantida gemütlich [N.T.: agradavelmente confortável], por assim dizer. Deve refletir as experiências cotidianas do leitor, e lhe dar uma certa vazão para os seus próprios próprios desejos e emoções.
  
20. E (para dar a meu Credo um número par de itens) eu aqui listo alguns dos mecanismos de que nenhum escritor de estórias de detetive que se respeite irá agora se valer. Eles foram empregados muito frequentemente, e são familiares a todos os verdadeiros amantes do crime literário. Usá-los é uma confissão da inépcia e falta de originalidade do autor. 

(a) Determinar a identidade do culpado comparando a guimba de cigarro deixada na cena do crime com a marca fumada pelo suspeito.
(b) Uma séance espiritualusta falsa para assustar o culpado e fazê-lo se entregar.
(c) Digitais falsificadas.
(d) O álibi usando um boneco como substituto.
(e) O cachorro que não late e portanto revela que o intruso é familiar.
(f) A acusação final do crime em um gêmeo, ou um parente que se parece exatamente com um suspeito que acaba sendo inocente.
(g) A seringa hipodérmica e as gotas de nocaute.
(h) O cometimento do assassinato em um quarto trancado em que depois a polícia tem que realmente arrombar.
(i) O teste de culpa por associação de palavras. 
(j) A cifra, ou carta codificada, que eventualmente é decifrada pelo investigador.

Ronald Knox
Em 1930, vários escritores britânicos de ficção detetivesca fundaram o Detection Club, tendo como um dos propósitos que todos adequassem suas estórias a um código de ética. As regras não eram obrigatórias, e sim vistas mais como linhas gerais que eram descumpridas em parte ou até em todo por vários dos membros. O Detection Club é apenas para convidados, existe até hoje e conta com integrantes renomados como Agatha Christie (1890-1976) e John le Carré (1931-). As dez regras foram consolidadas pelo Monsenhor Ronald Arbuthnot Knox (1888-1957), um dos membros do clube.


I. O criminoso deve ser alguém mencionado na parte inicial da estória, mas não deve ser alguém cujos pensamentos o leitor foi permitido acompanhar;

II. Todas as agências sobrenaturais ou preternaturais são excluídas como regra certa;

III. Não mais do que um quarto secreto ou passagem secreta é permitido. Eu adicionaria que uma passagem secreta sequer deveria ser incluída a menos que a ação tome lugar no tipo de casa em que tais mecanismos pudessem ser esperados;

IV. Nenhum veneno até então não descoberto pode ser usado, nem qualquer dispositivo que requeira uma longa explicação científica no final;

V. Nenhum Chinês deve aparecer na estória [à época, um mecanismo excessivamente usado era um "Chinês" ou outro personagem exótico ou estrangeiro como o malfeitor. Não era um comentário racista, mas uma reação a um excesso].

VI. Nunca um acidente deve ajudar o detetive, nem ele deve ter uma intuição incompreensível que acaba sendo verdade;

VII. O detetive não pode ele mesmo ter cometido o crime;

VIII. O detetive não deve levantar qualquer pista que não seja instantaneamente produzida para inspeção do leitor;

IX. O amigo estúpido do detetive, o Watson, não deve esconder qualquer pensamento que passe por sua mente; sua inteligência deve ser levemente, mas apenas muito levemente, abaixo da do leitor médio;

X. Irmãos gêmeos, e sósias em geral, não devem aparecer a menos que nós sejamos devidamente preparados para eles.