• Histórias Estranhas
  • A Quarta Dimensão
  • Adolpho Werneck - Vida e Obra
  • Arquivos de Guerra
  • Escravos dos Sentidos
  • Lamento e Perdição
  • Caçadores da Rua do Bosque
  • Peace and Love, Inc.

29 de setembro de 2010

O conto "A Água de Croma"


"A Água de Croma" é o décimo-quarto conto do livro e o que se passa no futuro mais distante. Sua curta extensão não permite fazer amostra, então apenas discutirei sua temática e elementos.

O pequeno texto é o resultado de vários experimentos reunidos -- a própria reunião um experimento. Desde que li sobre arte "sinestésica", que causa impressões que ultrapassam a mídia utilizada, pretendi criar um texto que evocasse sensações em vez de puro significado linguístico -- e não propriamente poético, mas que pudesse ser visto como tal. Não queria chegar a ponto de empregar elementos concretistas que alteram a forma física do texto, ou técnicas modernistas de experimentos linguísticos que visam abalar a capacidade de compreensão. Minha pretensão era evocar sensação e para tanto especifiquei dois objetivos, aludidos pelo título: umidade e cor.

Como o texto alcança a mente por um processo intelectual, ele está mais próximo da emoção, dos sentimentos, do que das sensações físicas. Há uma inegável conexão entre sensação e sentimento, portanto considerei esse o caminho a seguir para causar tais impressões. O texto, assim, associa sensações causadas por água e cor a sentimentos, para que o conjunto cause impacto maior que as ideias expressas por palavras.

Tratanto esse texto como uma exploração da dissociação, almejando o emocional antes do racional, considerei tornar este o tema, criando uma atmosfera etérea, onírica, transcendental, trazendo seres pós-humanos, aquilo que os homens podem se tornar depois de dramática evolução física, tecnológica e social, como os Eloi de "A Máquina do Tempo" de H. G. Wells. A estória se tornou exatamente sobre a exploração do emocional, uma redescoberta do sentimento.

Croma vem do termo Chroma key, nome de uma técnica de efeitos visuais em que uma das cores de uma imagem é substituída por outra -- bastante comum atualmente em filmes que empregam "tela azul" -- e também o nome do excelente projeto musical encabeçado por Kevin Moore, ex-tecladista da banda Dream Theater.

27 de setembro de 2010

"A Duração Apunhalada" de René Magritte

O pintor belga René François Ghislain Magritte (1898-1967), um dos expoentes do Surrealismo, é mais lembrado pela mescla de filosofia e imagem em suas obras, melhor representado pela sua obra mais conhecida, "A Traição das Imagens" (La thahison des images, 1929). Outra de suas características é o elemento recorrente de homens usando chapéu coco.

Natural de Lessines, seu pai era tecelão e sua mãe, chapeleira. Pouco se sabe sobre sua juventude. Submeteu-se a aulas de desenho em 1910, e seus primeiros quadros, datados de 1915, tinham estilo impressionista. De 1916 a 1918 teve estudo pouco inspirador em Bruxelas. Até 1924 sofreu influência do futurismo e cubismo, tendo servido na infantaria belga em 1921 e desenhado para uma fábrica de papéis de parede de 1922 a 1923. Produziu pôsteres e anúncios até 1926, quando firmou contrato com a Galerie la Centaure e pode se dedicar em tempo integral à pintura. Em 1926 pintou sua primeira obra surreal, "O Jóquei Perdido" (Le jockey perdu). Desolado com a recepção negativa de sua primeira exibição em 1927, mudou-se para Paris, onde conheceu André Breton (1896-1966) e envolveu-se com os Surrealistas.

O contrato terminou em 1929, com Magritte retornando a Bruxelas em 1930, onde permaneceu através da Segunda Guerra Mundial, perdendo contato com Breton. De 1943 a 1944, com a Bélgica ocupada pelos Nazistas, ele passou por um período de cores vívidas chamadas de "Período Renoir". Em 1946 ele assinou o manifesto "Surrealismo em Plena Luz do Sol", e de 1947 a 1948 adotou um estilo fauvista, similar a Matisse, e paralelamente sobreviveu vendendo falsificações de Picasso, Braque e Chirico. No fim de 1948 retornou ao estilo pré-Guerra, reforçando-o até sua morte em 1967.

Clique para ampliar
"A Duração Apunhalada" (La durée poignardée, 1938), um óleo sobre tela de 147 x 98,7 cm, tem seu título geralmento traduzido como "Tempo Transfixado", tradução que Magritte não apreciava. O quadro mostra uma pequena locomotiva "Black Five" -- nome pelo qual ficou notória a locomotiva a vapor Class 5 4-6-0 desenvolvida por William Stanier (1876-1965) -- saindo a pleno vapor de uma lareira, sobre a qual estão dois castiçais e um relógio em frente a um espelho, que reflete apenas o castiçal da esquerda e o relógio.

O quadro foi o segundo encomendado pelo poeta inglês Edward James (1907-1984), um dos apoiadores de Magritte e dos surrealistas. O primeiro foi um retrato de James intitulado "A Reprodução Interditada" (La reproduction interdite, 1937, conhecido como "A Não ser Reproduzido"). O Art Institute of Chicago adquiriu o quadro de James em 1970, quando este levantava fundos para construir Las Pozas, seu jardim de esculturas surreais.

Magritte disse sobre o quadro: "Eu decidi pintar a imagem de uma locomotiva... para que seu mistério fosse evocado, outra imagem imediatamente familiar sem mistério -- a imagem de uma lareira de sala de jantar -- foi juntada". O comentário do Art Institute sobre o quadro aponta para os efeitos da justaposição: a lareira torna-se um túnel ferroviário por onde sai o trem, enquanto o vapor da locomotiva entra pela lareira indicando que a fumaça sairia pela chaminé acima.

O título é, como era comum para Magritte, provocador em vez de alusivo ou diretamente referente ao conteúdo da obra. Ele é literalmente "o conceito de tempo contínuo trespassado por um punhal". Magritte esperava que James colocasse o quadro aos pés de uma escadaria onde ele (o trem, ou talvez o quadro inteiro) "apunhalaria" seus convidados no caminho para a sala da baile. James, entretanto, o pendurou sobre sua própria lareira.

Em última nota, o relógio parece indicar 12 horas e 43 minutos.

25 de setembro de 2010

Quanto vive o homem


A expectativa máxima de vida do homem é geralmente indicada como sendo de 100 anos. Mas a expectativa média, levando em conta os avanços médicos, costumes higiênicos e alimentares e outros fatores de cada época, oscilou mas cresceu ao longo da história:

ERA                                                         EXPECTATIVA MÉDIA
Paleolítico................................................33
Neolítico...................................................20
Era de Bronze/Ferro...............................35
Grécia Clássica.......................................28
Roma Clássica........................................28
América do Norte  Pré-Colombiana.....25-30
Califado Islâmico Medieval....................35+    
Bretanha Medieval...................................30      
Bretanha Moderna...................................40+      
Início do Século XX..................................30-45    
Média mundial atual.................................67.2

Fato curioso sobre a expectativa de vida média é que ela aumenta conforme a idade, logo os valores acima se referem à expectativa de vida no nascimento. Um homem do Paleolítico que alcançasse os 15 anos, por exemplo, poderia esperar viver até os 39.

Os 3 países com menor expectativa de vida são atualmente a Suazilândia (31 anos), Angola e Zâmbia (38 anos), todos no continente africano -- como quase todos os mais baixos, com exceção do Afeganistão. Os 3 países com maior expectativa de vida são o Japão, Islândia (82 anos) e Suíça (81 anos).


A pessoa de vida mais longa já documentada foi a francesa Jeanne Calment, com 122 anos e 164 dias. A pessoa viva mais velha atualmente é a também francesa Eugénie Blanchard, com 114 anos. Os brasileiros supercentenários -- termo para aqueles que ultrapassaram 100 anos -- não são reconhecidos pelo Gerontology Research Group, órgão internacional que o Livro de Recordes do Guinness aceita como autoridade para o registro de pessoas mais velhas. A lista inclui não só quem poderia ser a pessoa mais velha do mundo, Maria Olívia da Silva, com 130 anos, e a pessoa viva mais velha, Pedra Bento, com 121 anos.

22 de setembro de 2010

O conto "Planeta Asfalto"

Syd Mead
      Cada motorano nascia com uma marca peculiar entre os faróis da frente, que identificava a família original a que pertencia. Mesmo sem essa marca, era relativamente fácil identificar a descendência de um motorano ao analisar a forma de sua lataria. Apesar da grande polêmica, muitos diziam ser possível identificar alguns deles pelas capacidades inerentes à família, tais como potência maior do motor, maior aceleração ou velocidade final, maior capacidade de carga ou um melhor aproveitamento de combustível.
     Os motoranos menos privilegiados tinham que se contentar com seus itens originais e mantê-los sempre na melhor forma possível. Mas algumas famílias poderosas ou indivíduos ricos conseguiam pagar para seus filhos as melhores oficinas e aprimoramentos.
      Em seus primórdios, a sociedade motorana desenvolveu-se graças à força e capacidade de outros motorídeos para construir suas civilizações. Os grandes reboquinos e motorídeos tratores eram usados para cargas pesadas. As centomotivas carregavam muitas cargas com maior velocidade, percorrendo as trilhas que criavam. Diversos tipos de vacaminhões eram criados para ajudar na nutrição, pois consumiam óleos brutos impróprios para motoranos e os transformavam em combustível aproveitável. Barcarapaças que flutuavam nos mares serviram para percorrer suas distâncias e os motoranos conquistaram os céus usando os motorídeos voadores, ou aeros. Motóides e motociclinos, pequenos motorídeos de duas rodas, eram usados para guarda ou mantidos como motorídeos de estimação.
      Mas os motoranos não subjugaram apenas outros motorídeos. As ilhas quadradas cercadas pelo asfalto eram habitadas por uma raça de pequenas e débeis criaturas que buscavam refúgio nos grandes aglomerados de postes. Comunidades desta forma de vida frágil podiam se estender por várias ilhas, conectadas por túneis subterrâneos ou por passagens sobre as faixas de asfalto. Estes chamados “humanos” são seres preguiçosos e ignorantes por natureza; seus corpos são fracos e suas cabeças pequeninas, denotando baixo intelecto e pouco caráter. Com chances de sobreviver evidentemente ameaçadas, os humanos foram logo empregados pelos motoranos, a princípio para fins de entretenimento.


"Planeta Asfalto" é o décimo-terceiro conto do livro. A estória se passa em um futuro dominado por "motoranos", carros inteligentes, que reescreveram a história e noções naturais do planeta conforme o ponto de vista deles, tendo subjugado e escravizado os seres humanos.

A "nova história natural" que inicia o conto cria o ambiente para uma narrativa sobre crianças das duas raças: o motorano Max e o humano Júlio. A amizade conturbada dos dois sofre um abalo crítico, que culmina em um choque fundamental na relação entre o homem e suas criações. Todavia, o conto pretende ser desde o início uma exploração de diferenças de pontos de vista. Pretende ser um conto motorano, e não humano.

Gosto de brincadeiras de percepção em meus contos, ou seja, usar elementos que criem expectativas e depois subvertê-las, para denunciar os vícios e falhas na transformação de estímulos e impressões em conceitos. A mídia escrita é particularmente propícia para isso, pois além de permitir explorar a tendenciosidade psicológica de personagens -- e através deles, a dos leitores -- permite explorar também as limitações da linguagem, na forma como ideias e sentimentos são expressos e captados. Esse conto é um experimento nesse sentido, através do uso de uma premissa familiar com inversão de papéis.

O cenário a ser utilizado para explorar essa ideia ainda estava em aberto, até eu ler uma graphic novel excelente intitulada "Era Metalzóica" (Metalzoic, 1986), do roteirista Pat Mills e desenhista Kevin O'Neill, em que robôs têm formas e comportamentos animais como se fossem formas de vida naturais. A brincadeira com a evolução do mundo me instigou e criei um cenário próprio de "extrapolação da biônica", depois de ler um artigo sobre um "carro do futuro", repleto de sensores e controlado por um computador de bordo.

O título era originalmente "Asfalto", pois é como os motoranos chamam o elemento correspondente ao que dá nome ao nosso planeta, "Terra". Acatei a sugestão de minha namorada -- e maior contribuidora -- de adicionar "Planeta" para tornar a alusão mais clara.

Veja também este excelente artigo sobre visões de várias montadoras para veículos daqui a cinquenta anos. Desconfio dessas previsões: já é 2010 e nada de carros voadores!

20 de setembro de 2010

Os Beatles e o Tempo

O lendário Quarteto de Liverpool formado por John Lennon (1940-1980), Paul McCartney (1942-), George Harrison (1943-2001) e Ringo Starr (1940-) fez por merecer sua posição honrosa na história da música, graças à influência pervasiva sobre os que se seguiram, constituindo um verdadeiro marco da cultura moderna.

Esta é uma lista de canções da banda que trazem alusão ou referência relacionada ao Tempo, com comentários.

With The Beatles, 1963
  • It Won't Be Long ("Não Vai Demorar"). A espera melancólica e diuturna pelo amor na primeira música original gravada para o álbum, e também sua primeira faixa.
 Beatles For Sale, 1964
  • Eight Days a Week ("Oito Dias por Semana"). "Não tenho nada além de amor, nenê, oito dias por semana".
  • I'll Follow The Sun ("Eu Seguirei o Sol"). Um ultimato de um homem para a mulher que não lhe dá valor. "Um dia você vai olhar e ver que fui embora, porque amanhã pode chover, então eu seguirei o sol".
 Help!, 1965
  • The Night Before ("A Noite Anterior"). "O amor estava nos seus olhos, ah, na noite anterior. Mas hoje eu descubro que você mudou de ideia. Trate-me como tratou na noite anterior."
  • Yesterday ("Ontem"). "De repente eu não sou metade do homem que costumava ser, há uma sombra pairando sobre mim. Oh, ontem veio tão repentinamente."
Revolver, 1966
  • For No One ("Para Ninguém"). Um poderoso comentário sobre a decadência de uma relação amorosa, "um amor que deveria ter durado anos".
  • Good Day Sunshine ("Bom Dia Brilho do Sol"). Uma calorosa e alegre recepção ao dia.
  • Tomorrow Never Knows ("Amanhã Nunca Sabe"). Um experimento psicodélico que é tanto uma ode de desapego ao tempo como um experimento em compassos misturados em um só som.
Rubber Soul, 1966
  • What Goes On ("O Que Acontece"). "Eu encontrei você pela manhã esperando pelas marés do tempo, mas agora a maré está mudando, posso ver que estava cego."
 Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967
  • A Day in the Life ("Um Dia na Vida"). Os trechos de Lennon são inspirados em artigos de jornais, enquanto os de McCartney são memórias de sua juventude. 
  • Getting Better ("Ficando Melhor"). Um diálogo contrastante entre as tristes confissões sobre o passado e o desejo otimista por um futuro melhor.
  • Good Morning Good Morning ("Bom Dia Bom Dia"). Um dia na vida de alguém acostumado a uma rotina disfuncional diária.
  • She's Leaving Home ("Ela Está Saindo de Casa"). Um lamento dos pais sobre a filha que foge de casa é também um comentário sobre os interesses descobertos por uma jovem que não é mais criança.
  • When I'm Sixty-Four ("Quando Eu Tiver Sessenta e Quatro"). Uma canção sobre envelhecer junto com a pessoa amada, trilha do Mar do Tempo no filme "O Submarino Amarelo" (1968).
Magical Mystery Tour, 1967
  • Blue Jay Way. A psicodelia que evoca a espera interminável foi composta enquanto Harrison esperava por um amigo que se atrasou.
  • The Fool on the Hill ("O Tolo na Colina"). "O tolo na colina vê o sol se pôr e os olhos na sua cabeça veem o mundo girar". Segundo McCartney, uma canção sobre "alguém como Maharishi", um dos gurus da banda.
The Beatles ou White Album, 1968
  • Birthday ("Aniversário"). A canção de aniversário é a única do álbum em que Lennon e McCartney compartilham o vocal principal.
  • Don't Pass Me By ("Não Me Deixe de Lado"). "Ouço o relógio tiquetaquear no parapeito da lareira, vejo os ponteiros se moverem, mas estou sozinho". A angústia da potencial rejeição amorosa na primeira composição de Ringo, cantada por ele. 
  • Good Night ("Boa Noite"). "Agora o sol desliga sua luz, boa noite, durma bem".
  • Helter Skelter. Segundo McCartney, ele quis conectar a ascensão e queda do Império Romano a um escorregador circular de parques de diversão de mesmo nome que a música.
Abbey Road, 1969
  • Here Comes The Sun ("Aí Vem o Sol"). Harrison escreveu a música quando fugiu dos negócios enfadonhos da Apple e de problemas de sua vida para a casa de Eric Clapton.

17 de setembro de 2010

Querido diário

Os diaristas ou escritores de diários são considerados hoje como documentadores de suas épocas, registrando seus cotidianos, fornecendo detalhes únicos sobre eventos históricos, trazendo informações sobre minúcias esquecidas e, principalmente, permitindo que as gerações futuras conheçam os costumes e formas de pensar de épocas passadas.

Registros escritos periódicos proliferaram assim que sistemas complexos exigiram maior organização na sociedade, o que ajudou a difundir a alfabetização, antes reservada apenas às esferas dominantes. Assim, registros governamentais, militares e financeiros evoluíram com os sistemas a que se referiam. Outro tipo de registro bastante frequente e popular eram os registros de viagem, incluindo relatos de emissários, mensageiros e diplomatas, anotações de caravanas e mercadores e diários de bordo de embarcações.

Mas há características para o que é considerado modernamente um diário -- entradas pessoais escritas em sequência cronológica e de periodicidade curta e regular (daí o nome diário) -- que remontam ao mais antigo registro particular, a obra intitulada "A Mim Mesmo" do imperador romano Marco Aurélio (121-180). Outros predecessores de diários incluem o gênero Zuihitsu, estilo de registrar incidentes diários inspirado principalmente por "O Livro de Travesseiro" (Makura no Sōshi, 1002) da cortesã japonesa Sei Shōnagon (966-1017); transcrições de visões e revelações das nuncas canonizadas Santa Elizabete de Schonau (1129-1165) e Santa Agnes Blannbekin (1244-1315); e, na Renascença, o "Diário de um Burguês de Paris" (Journal d'un bourgeois de Paris, 1449) de autoria anônima, e as confidências dos florentinos Buonaccorso Pitti e Gregorio Dati e do veneziano Marin Sanudo (1466-1536).

O primeiro diarista, alguém que mantinha diários com habitualidade e homogeneidade, foi o inglês Samuel Pepys (1633-1703), que paralelamente às suas atividades na Marinha e no Parlamento, manteve um diário de 1660 a 1669. Por quase dez anos, Pepys manteve um diário propriamente dito, um registro de cada dia de sua vida em Londres. A constância e detalhes do texto o tornaram fonte primária para o período da chamada Restauração Inglesa, conclusão das Guerras dos Três Reinos que restaurou as monarquias da Inglaterra, Escócia e Irlanda sob o Rei Carlos II em 1660. Eventos históricos abrangidos pelo diário de Pepys incluem a Segunda Guerra Anglo-Holandesa (1665-1667) vencida pelos Países Baixos; a Grande Praga (1665-1666) que matou cerca de 100.000 pessoas, 20% da capital inglesa, de peste bubônica; e o Grande Incêndio de 1666, que iniciou em um forno de padaria e consumiu mais de 13.000 edificações, principalmente da área mais antiga de Londres, cercada por um muro da época dos romanos. O diário de Pepys foi publicado pela primeira vez em 1825. Menos conhecido mas igualmente importante é o contemporâneo de Pepys, John Evelyn (1620-1706), que inclusive apresentou um dos planos de reconstrução para a Londres incendiada.

A prática foi notada e outros diários foram publicados postumamente, como o Grasmere Journal de Dorothy Wordsworth (1771-1855), irmã do poeta inglês William Wordsworth, expoente do romantismo na Inglaterra com Samuel Taylor Coleridge, ambos retratados por ela; os diários da romancista inglesa Frances Burney (1752-1840), mantidos desde os dez anos, apesar de "edições" que fez quando adulta em retrospecto; e Henry Crabb Robinson (1775-1867), que conheceu ilustres alemães como Goethe e Schiller e foi correspondente das Guerras Napoleônicas.

A prática sobreviveu através dos anos até nossos tempos. Um dos diários mais famosos é o de Anne Frank (1929-1945), publicado originalmente como "Nos fundos do prédio" (Het Achterhuis, 1947) na língua holandesa, em que foi escrito. Os nazistas ocupavam os Países Baixos desde 1940. Anne começou o diário em um caderno que ganhou em seu 13º aniversário, no dia 12 de junho de 1942. No mês seguinte sua irmã Margot foi convocada para um campo de trabalho e a família resolveu esconder-se em salas secretas do prédio da companhia do pai Otto, em Amsterdã. O diário descreve a vida da família e de outras que se juntaram a eles nas salas escondidas, até a última entrada em 1 de agosto de 1944. Três dias depois um informante desconhecido entregou a localização das famílias, com Anne sobrevivendo a Auschwitz por já ter 15 anos, indo para Bergen-Belsen, onde ela e a irmã morreram de tifo em março de 1945. Seu diário é considerado um dos mais comoventes relatos sobre os efeitos da guerra na sociedade.

Personalidades bastante distintas figuram lado a lado como diaristas, em uma lista que inclui:
  • Adolfo Bioy Casares (1914-1999), escritor argentino
  • Lewis Carroll (1832-1898), escritor inglês
  • Kurt Cobain (1967-1994), cantor estadunidense
  • Aleister Crowley (1875-1947), místico inglês
  • Fyodor Dostoyevsky (1821-1881), escritor russo
  • Allen Ginsberg (1926-1997), poeta estadunidense
  • Joseph Goebbels (1897-1945), político nazista 
  • Ernesto "Che" Guevara (1928-1967), revolucionário argentino 
  • Carl Jung (1875-1961), psicólogo suíço
  • Franz Kafka (1883-1924), escritor tcheco
  • Søren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês 
  • Thomas Mann (1875-1955), escritor alemão 
  • Alanis Morissette (1974-), cantora canadense 
  • Anaïs Nin (1903-1977), escritora francesa 
  • Michael Palin (1943-), comediante inglês 
  • George Bernard Shaw (1856-1950), dramaturgo irlandês 
  • Leo Tolstoy (1828-1910), escritor russo 
  • Rainha Vitória do Reino Unido (1819-1901)
  • Richard Wagner (1813-1883), compositor alemão 
  • Andy Warhol (1928-1987), pintor estadunidense 
  • Virginia Woolf (1882-1941), escritora inglesa


No Brasil, há duas diaristas notáveis. A paulista Carolina Maria de Jesus (1915-1977) teve seu diário publicado como o livro "Quarto de Despejo" (1960), em que relatava sua vida na favela do Canindé, cujo sucesso permitiu-lhe uma carreira de escritora com outros 4 livros subsequentes. A outra é a mineira Helena Morley, pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant (1880-1970), que manteve um diário sobre sua vida dos 13 aos 15 anos em Diamantina/MG, depois publicado como o livro "Minha Vida de Menina" (1942).


Sobre o tema veja também The Diary Junction, que contém informações e listas de mais de 500 diaristas.

16 de setembro de 2010

Nomes na noite (um poema)

Helena e Menelau - Louvre


Filtrando nossos espíritos por poros cósmicos
A noite faz sementes lançadas sibilantes à terra
Esperando que procriem em férteis campos
Onde suas sombras não podem chegar

Os ventos do tempo as colhem e acalentam
Forçando a brotar mas tentando derrubar
Abalando os alicerces de nossa fragilidade
Mas fazendo nossas sombras apenas bruxulear

Que os antigos nos deem nomes antigos
Palavras de poder vazio, cascas escritas
A nós resta preencher com nós mesmos
Grandes em nossa miniatura



Poema que dediquei à amiga Helena, cujo nome evoca grandezas maiores que o meu: a filha de Zeus e Leda era em sua época a mulher mais bela do mundo, que no ardil de Eris foi prometida por Afrodite ao frígio Paris, despertando o ódio dos gregos da rejeitada Hera, que vieram resgatar a bela, causando a maior guerra da antiguidade. 

O meu nome (inspirado pelo hotel homônimo ao lado do Banco do Brasil da Praça Tiradentes, em Curitiba) vem do Rei Eduardo VII do Reino Unido, conhecido como o "Tio da Europa" por seu parentesco com quase toda a realeza continental e como "Pacificador" pela paz firmada com a França e outros países, sucessor de Vitória e dando nome à Era Eduardiana.

15 de setembro de 2010

O conto "Na Linha de Montagem"


"Na Linha de Montagem" é o décimo-primeiro conto do livro. Do texto curto não caberia fazer amostra, portanto discutirei brevemente sobre o tema e sua publicação anterior.

O conto transcorre em uma linha de montagem de naves espaciais, como uma conversa entre dois montadores após um deles ter discutido com um superior. O conto foi escrito para publicação em um livro da série Perry Rhodan, editada no Brasil pela Editora SSPG. Além de episódios que dão andamento à cronologia da série, os livros traziam contos com temática compatível, ou seja, espacial.

Aceitei a oportunidade de redigir um conto pequeno, me impondo um desafio de não escrever um texto de ficção científica puro, mas com uma visão crítica sobre os elementos clássicos da ambientação. Visei então dar atenção não às maravilhas futuristas imaginadas pelos (geralmente) esperançosos autores, mas ao operacional requerido para executar tais maravilhas. Lembrei-me da infeliz realidade de incontáveis feitos técnicos de nossa história, como veículos e construções, aos quais são associados os nomes dos inventores e projetistas -- algumas poucas centenas -- contra os milhões de anônimos que retiraram matéria-prima, operaram máquinas, se arriscaram e se comprometeram para a difusão da tecnologia. Esses homens só são lembrados se ocorrem desastres, esquecidos pouco depois de surgirem nas notícias ou com seus nomes sepultados em placas de memoriais. 

Fica difícil dizer a essas pessoas para se orgulharem de seus trabalhos e se sentirem bem por contribuírem para a sociedade da forma que conseguem, se a própria sociedade destina real reconhecimento de valor apenas a alguns poucos que tiveram a oportunidade e recursos para obterem formação e uma posição em que possam empregá-la, desfrutando dos privilégios subsequentes.

Um dos requerimentos inevitáveis de uma sociedade tecnológica é a mão-de-obra industrial. Só é possível que todos desfrutem de posições de trabalho intelectual quando (e se) houverem substitutos completos para o trabalho braçal, que alguns futuristas apostam que virão da robótica. Se for considerado o fator mais determinante de decisões referentes à produção industrial -- a lucratividade -- sobre o qual o custo da produção tem influência direta, pode-se especular que pode não existir, até num futuro distante, substituto economicamente viável para a mão-de-obra humana.

O tema do conto oferece uma janela para um futuro de gloriosas conquistas, mas voltado para uma conjetura realista que em última análise pode ser aplicada a toda a evolução da civilização humana.

13 de setembro de 2010

Chaplin e o Tempo

O inglês Charles Spencer Chaplin (1889-1977), melhor conhecido como Charlie Chaplin e no Brasil como "Carlitos", é um ícone imortal do cinema e um gênio da Sétima Arte, com seus talentos abrangendo toda a produção cinematográfica, tendo atuado, produzido, dirigido, escrito roteiros e composto músicas para seus próprios filmes, e vivenciado a transição do cinema mudo para o falado. Sua carreira inclusive alcançou o cinema em cores, ainda que tenha sido um só filme (A Condessa de Hong Kong, 1967).
Minha ideia original era falar do magnífico "Tempos Modernos", mas para não discutir apenas uma das preciosas obras do grande Carlitos, resolvi apresentar também um conjunto de seus outros filmes com elementos relacionados ao Tempo.
  • Carlitos Contra o Relógio (Twenty Minutes of Love, 1914). O primeiro filme que dirigiu. Carlitos vai a um parque e encontra casais de namorados, que se tornam alvos de suas zombarias e brincadeiras. Uma mulher pede a seu namorado uma prova de seu amor, e ele rouba um relógio de bolso de outro que dorme para dar a ela. Enquanto isso, a mesma mulher flerta com Carlitos. Ele então encontra o namorado e rouba o relógio dele, dando-o de presente à mulher. O namorado os vê juntos, briga com Carlitos, que foge com o relógio. Ele então tenta vendê-lo ao seu dono original, o homem que dormia. As brigas à beira do lago parecem ter a única conclusão possível.
  • O Passado Pré-Histórico (His Prehistoric Past, 1914). O último filme de Chaplin para os estúdios Keystone. Impagável como homem das cavernas vestindo pele mas ainda de chapéu e bengala e fumando, Carlitos se encanta com Sum-Babee, a favorita do harém de mil esposas do rei. Carlitos empurra o rei em um precipício e se proclama rei, mas o rei retorna e bate na cabeça dele com uma pedra. A cena final revela o que realmente estava acontecendo.
  • O Grande Ditador (The Great Dictator, 1940). Magnífica obra que Chaplin dirigiu, produziu, escreveu, estrelou em papel duplo e cuja música compôs. Notável por ter sido o primeiro longa-metragem a satirizar a Alemanha Nazista, antes de seus maiores horrores serem revelados. Um barbeiro judeu, amnésico e internado desde a Primeira Guerra Mundial, recebe alta e retorna à sua barbearia no país de Tomania, governado pelo ditador hitleresco Adenoid Hynkel. Reencontrando suas memórias com Schultz, um oficial alemão que salvou na guerra, o barbeiro é ajudado por ele em uma trama que culmina em um plano para tirar Hynkel do poder, com o sucesso vindo de forma inusitada.
  • Luzes da Ribalta (Limelight, 1953). Ambientado em 1914, ano dos primeiros filmes de Chaplin, em que representa papel quase autobiográfico. O comediante Calvero, velho e bêbado, evita que a jovem atriz Terry Ambrose se suicide, e tentando elevar o ânimo dela acaba também se reanimando. Terry quer casar-se com ele a despeito da idade, mas Calvero tenta dissuadi-la da ideia tornando-se um artista de rua. Estrela de seu próprio espetáculo, Terry o reencontra e pede que faça um espetáculo beneficente. Calvero se reúne com um velho parceiro (Buster Keaton, na única vez que contracenam juntos) e sua performance magnífica encerra sua carreira.
  • Tempos Modernos (Modern Times, 1936). O filme inteiro é marcado pelos tempos de mudança, iniciando com um relógio. O filme começa em uma indústria que o chefe monitora por telas, e controlada por um painel de alavancas e válvulas. Na linha de produção, um operário que aperta parafusos não consegue acompanhar os limites de velocidade pressionados pelo chefe e outros abusos, é tragado pela máquina e enlouquece. Saindo do hospital, ele tenta devolver uma bandeira que caiu de um caminhão bem na hora que uma passeata comunista o segue, fazendo-o ser preso como líder do movimento. Na prisão, ele inadvertidamente come cocaína como se fosse sal e, em delírio, combate criminosos que vieram soltar prisioneiros, ganhando regalias dos carcereiros. Eventualmente ele é perdoado e solto, mas quer voltar e tenta assumir a culpa por um roubo cometido por uma garota pobre, sem sucesso. Preso enfim por ter comido em uma lanchonete sem pagar, ele reencontra a garota pobre no camburão, com quem foge e planeja uma vida melhor, a despeito das subsequentes prisões, falhas em trabalhos e confusões. Eventualmente ele se torna cantor na cafeteria em que é garçom e em que a garota dança, com um improviso seu fazendo grande sucesso, mas a polícia surge novamente, tornando-os uma vez mais fugitivos.

3 de setembro de 2010

8 de setembro

Na semana que vem não farei postagens. Durante minha ausência, trago algumas curiosidades sobre 8 de setembro, dia de meu aniversário!

Um Dia Sequencial é uma curiosidade matemática que ocorre quando há uma sequência numérica na data escrita com apenas dois dígitos para dia, mês e ano. Meu aniversário na semana que vem é um Dia Sequencial: 08/09/10. A limitação para a ocorrência de Dias Sequenciais é o dígito correspondente ao mês. Como esse número só pode ir de 1 a 12 -- e não havendo dia 00 -- há uma janela de 11 anos em que podem ocorrer Dias Sequenciais:

01/02/03 - ocorreu em 1903 e 2003 e só ocorrerá novamente em 2103;
02/03/04 - ocorreu em 1904 e 2004 e só ocorrerá novamente em 2104;
03/04/05 - ocorreu em 1905 e 2005 e só ocorrerá novamente em 2105;
04/05/06 - ocorreu em 1906 e 2006 e só ocorrerá novamente em 2106;
05/06/07 - ocorreu em 1907 e 2007 e só ocorrerá novamente em 2107;
06/07/08 - ocorreu em 1908 e 2008 e só ocorrerá novamente em 2108;
07/08/09 - ocorreu em 1909 e 2009 e só ocorrerá novamente em 2109;
08/09/10 - ocorreu em 1910, ocorrerá agora em 2010 e depois só em 2110;
09/10/11 - ocorreu em 1911, ocorrerá em 2011 e depois só em 2111;
10/11/12 - ocorreu em 1912, ocorrerá em 2012 e depois só em 2112;
11/12/13 - ocorreu em 1913, ocorrerá em 2013 e depois só em 2113.

Para aumentar a sequência, é possível considerar sequências de horários também, como às 06:07 do dia 08/09/10, ou, considerando os segundos, às 05:06:07 do dia 08/09/10.

Além da peculiaridade neste ano, o dia 8 de setembro é sempre feriado em Curitiba, sendo o dia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, a padroeira da cidade. É também o Dia Internacional da Alfabetização desde 1966. Dentre as inúmeras ocorrências neste dia na história, destaco as seguintes:
  • 1157: nascimento do rei inglês Ricardo I, o Coração de Leão
  • 1504: revelação do "David" de Michelangelo
  • 1551: fundação de Vitória/ES
  • 1830: nascimento do escritor francês Frédéric Mistral, Nobel de Literatura de 1904
  • 1841: nascimento do compositor tcheco Antonín Leopold Dvorák
  • 1888: descoberta do corpo de Annie Chapman, segunda vítima de Jack, o Estripador
  • 1925: nascimento do ator britânico Peter Sellers
  • 1926: admissão da Alemanha na Liga das Nações
  • 1930: primeiro rolo de fita transparente Scotch, da 3M, é enviado a um cliente
  • 1941: alemães iniciam o Cerco de Leningrado
  • 1944: lançado o primeiro dos 1358 foguetes alemães Vergeltungswaffe 2 que atingiu Londres
  • 1949: falece o compositor alemão Richard Strauss
  • 1966: inicia pela NBC-TV a série original de Jornada nas Estrelas, com o episódio The Man-Trap
  • 1968: estreia mundial do filme promocional de Hey Jude, dos Beatles, no programa de TV Frost on Saturday
  • 1991: Declaração de Independência da Macedônia

2 de setembro de 2010

"A Quarta Dimensão" de Eduardo Capistrano

Esta postagem será atualizada conforme passos da publicação são completados. Futuramente constará aqui a capa, dados sobre o livro e formas de aquisição, como a postagem que fiz para meu primeiro livro, "Histórias Estranhas". Os títulos dos contos tem atalhos para postagens com amostras e discussões sobre seus temas e elementos.
O conteúdo desta postagem tornou-se a descrição do livro na seção própria do blog.

     O tema desta coletânea de contos de Eduardo Capistrano é o Tempo. Estórias inspiradas pela história, ambientadas no passado; visões distópicas, sombrias ou bem-humoradas, lançadas no futuro; e narrativas sobre a passagem do tempo, no contato entre gerações, na invocação das memórias e na importância dos mais breves momentos.
     Os contos são ordenados cronologicamente e abrangem as diversas relações do homem com o Tempo. Os quatro primeiros tratam do passado. “Espelhos da Alma” é um diálogo que expõe a condição do “homem de ciência” da Renascença e sua relação com o homem médio, não muito diferente do que ocorre hoje. Em “Beijo de Ópio” um brasileiro na Era Vitoriana conta como se deixou seduzir pela total decadência moral. “Primeiro-Tenente” acompanha um militar sob um comando abusivo no início da República. “Carolina de Óculos” mostra as estranhas visões documentadas no diário de uma menina de imaginação fértil.
     Os quatro contos seguintes ocorrem no presente. Um garoto tenta entender a capacidade de parar o tempo que aprendeu com o pai em “Entre Segundos”. Um estranho sinal parece ser a resposta à monotonia da vida reclusa de um matemático em “Saudações do Futuro”. O título de “Parafuso Frouxo” traz a causa de um mundo chegar ao fim. “Mulheres e Crianças Primeiro” mostra qual força tem as convenções sociais quando a causa de um acidente de ônibus é revelada.
     Seis contos ocorrem no futuro. “A Maçã Elétrica” acompanha um solitário programador de inteligências artificiais em conflitos emocionais com suas criações. “Futuro Seguro” traz uma distopia bem-humorada de um futuro em que as corporações regozijam sem limites. “Na Linha de Montagem” discute a evolução da tecnologia comparada à da moral humana. “Controle Remoto” mostra a brutal opressão de uma sociedade controlada através de televisores. “Planeta Asfalto” é um mundo dominado por automóveis inteligentes. “A Água de Croma” é uma reflexão sobre a evolução sentimental da humanidade.
     A coletânea conclui com “Ouroboros”, que discute o eterno retorno com a documentação medieval de um interrogatório feito a um visitante distante.

1 de setembro de 2010

O conto "Controle Remoto"


     Ele teve um nome, algum dia. Agora tinha uma alcunha de processamento. Era ca.15.f3.b9.
     Estava em sua casa, uma residência-padrão. A sala era quadrada de 3 metros por 3 metros, com 2 janelas e: 1 (um) vaso de plantas de plástico; 1 (um) sofá estofado; 1 (um) tapete grande; 1 (uma) mesa de madeira falsa; 2 (duas) cadeiras de madeira falsa; e 1 (um) multitelevisor. Cada item era disponibilizado com alguma variedade, em 3 tipos diferentes, de modo que uma sala pudesse ser diferente de outra. Uma porta levava ao quarto, que continha: 1 (uma) cama de solteiro, 1 (um) armário embutido padrão e 1 (um) multitelevisor. Outra porta era a saída.
     Ele estava sentado em seu sofá. Perto dele, seu fiel amigo Rex. Existiu um nome para a raça do cão, algum dia. Agora ele era um cachorro-padrão, 2º tipo, dentre os que podiam vir com a casa. A seleção de mascotes era cachorros ou gatos, cada um em 3 tipos diferentes, totalizando 6 tipos diferentes, sendo, assim em variedade muito maior que a dos móveis.
     Estava diante do multitelevisor da sala. O aparelho era de vidro negro não-reflexivo de um metro de altura por dois metros de largura e três centímetros de espessura, de cantos arredondados e instalado na parede, tendo na parte de baixo um painel com uma fenda quase imperceptível.  O aparelho podia ser operado por meio de toques na tela, mas isso não era usual. Em suas mãos, ca.15.f3.b9 tinha o controle remoto para multitelevisores, cuja guarda era talvez sua responsabilidade mais importante. O controle remoto era um paralelepípedo fino de plástico preto e polido. Apontando-o para a tela e movendo-o, era possível comandar um pequeno ponto para selecionar opções. Havia um único botão para ativar as opções selecionadas. O multitelevisor não podia ser desligado.
     Ele estudou com cuidado a tela. O aparelho exibia uma série de datas e apontamentos. Era uma programação. Ele leu as entradas para a semana seguinte: “Dia 1. 0h: repouso. 6h: trabalho. 12h: trabalho. 18h: descanso”. Todos os outros dias eram idênticos. Ele soltou um suspiro e operou o controle desanimado, o cursor na tela respondendo a todo pequeno movimento do controle. Então, sua atenção foi subitamente capturada por algo na tela.
     Tinha aberto uma lista de eventos para os quais havia sido classificado. “Mudar de emprego”, “aprender um ofício”, “aprender um passatempo”, “fazer amigo”, “engordar”, “emagrecer”... Já havia visto a maior parte deles e nenhum o interessava. Mas havia um item novo. Ele o selecionou e requisitou detalhes, inclinando-se para frente, os olhos brilhando.
     “Namorar. Seus índices de aproveitamento o classificaram para iniciar uma relação de caráter amoroso com pessoa também classificada. Se optar por este evento, uma lista das pessoas disponíveis lhe será transmitida. O cancelamento será possível caso a lista não contenha itens satisfatórios”.


"Controle Remoto" é o décimo-segundo conto do livro. A estória se passa no futuro, uma distopia em que os indivíduos tem suas vidas controladas através de televisores.

Dois fatores distintos se reuniram -- espero que homogeneamente -- para a realização deste conto. Consegui em várias ocasiões escrever estórias inteiras desenvolvendo algum lampejo que parecia ter graça ou lógica, ou um fato curioso isolado. Classifico assim estórias que desenvolvi tendo o título em mente, como é (em parte) o caso deste. O termo "controle remoto", na sociedade moderna, permite uma noção curiosa: é o nome do dispositivo que usamos para operar o televisor, através do qual age a mídia mais difusa e influente sobre a opinião pública, o que já foi exposto como uma forma eficiente de controlá-la. O termo, neste contexto, torna-se ambivalente e evoca a ironia do consumidor que pensa estar controlando, exercendo sua liberdade em escolhas, quando na verdade está sendo controlado, mantido preso em obrigações. 

A noção já figurava nas distopias consagradas pelas obras "Fahrenheit 451" (1953) do estadunidense Ray Bradbury (1920-) e, mais diretamente, "Nós" (1924) do russo Yevgeny Zamyatin (1884-1937), através da obra mais notória que inspirou, "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro" (1949) do britânico George Orwell (1903-1950) -- origem do termo "Grande Irmão" estranhamente celebrado na atualidade. A oportunidade é boa para fazer uma relação com outra famosa distopia em que o controle não é propriamente por televisores. Em seu livro "Vamos nos divertir até a morte" (Amusing Ourselves to Death, 1985), o estadunidense Neil Postman (1931-2003) denuncia que a cultura televisiva atual não é tanto orwelliana, estando mais próxima de "Admirável Mundo Novo" (1932) de Aldous Huxley (1894-1963), em que o controle era feito pelo consumo de uma droga alucinógena.

Não encontrei uma "roupagem" apropriada para escrever a ideia, até surgir o segundo fator. Sonhei com a cena que se tornou a conclusão do conto, que não tinha relação alguma com a noção que expliquei. Mas a atmosfera angustiante, lúgubre e opressora do sonho serviu não apenas para evocar a sociedade sufocante da estória, como também forneceu o enredo, uma estória de amor, um tom claro contrastando com a escuridão circundante.