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7 de julho de 2010

O conto "Ouroboros"



     No nono dia de fevereiro do ano de mil quinhentos e sessenta e sete, comparece perante mim, João Manuel de Lima, O.P., um homem não identificado, de naturalidade e idade desconhecidas, encontrado nu nos arredores de ______, no vigésimo primeiro dia de setembro do ano passado, desde então abrigado secretamente neste monastério.
     Ao ser trazido para o monastério, acreditava-se que o indivíduo estivesse embriagado ou intoxicado de maneira semelhante, mal conseguindo ficar de pé. Ocorre que esta condição melhorou apenas um pouco depois de meses, exigindo assim que ele seja ouvido no estado em que se encontra.
     O homem balbucia coisas ininteligíveis constantemente; mesmo sentado balança o tronco e a cabeça como se lhe faltasse equilíbrio; não parece ter ciência do que ocorre ao seu redor e não tem noção precisa de onde está ou qual é o dia certo. Ele inclusive faz relatos ora como fatos que aconteceram, ora como fatos que, segundo ele, vão acontecer. Sua expressão é sonolenta e carece de emoções.
     O indivíduo fala e compreende rudimentos de português, motivo de meu chamamento à localidade, mas demonstra evidente dificuldade tanto em compreender os questionamentos quanto em oferecer respostas que eu possa decifrar a contento. Apesar das respostas parecerem diretas na leitura, elas levaram muito mais tempo para serem proferidas, decifradas, esclarecidas, escritas e confirmadas pelo declarante. A declaração, assim, foi colhida até os limites de minha capacidade e atesto que é a verdade, com o perdão de Deus.
     Antes dos primeiros questionamentos o homem parece expressar algo de entusiasmo assim que compreende o que lhe digo, ainda que em parte. Ele não pareceu compreender quando informei que colheria sua declaração, pois em seguida pediu que eu documentasse tudo.
     Questionado sobre seus pais, avôs, irmãos, cônjuge e filhos, quem são e onde moram, responde que não são vivos ou conhecidos. Questionado novamente, responde da mesma forma.
     Questionado sobre qual é seu nome, local de nascimento, idade e ocupação, não pude discernir o que responde, mas o faz de maneira zombeteira. Questionado novamente, determino apenas que responde “zero” quanto à idade. Faço constar que o homem parece ter em torno de quarenta anos.


"Ouroboros" é o décimo-quinto e último conto do livro. A estória é ambientada no ano de 1567, em lugar incerto da Europa, mas próximo de Portugal, de onde vem o narrador.

Naquela época, a tradicional religiosidade cristã da Europa estava abalada pelos movimentos de Reforma da Igreja Católica, chamados Protestantes, que davam seguimento ao trabalho dos alemães Martin Luther (1483-1546) e Martin Bucer (1491-1551); dos suíços Huldrych Zwingli (1484-1531) e Heinrich Bullinger (1504-1575); do italiano Pietro Martire Vermigli (1499-1562) e do inglês John Calvin (1509-1564), o primeiro fundador do Luteranismo e os demais influentes no surgimento do Calvinismo, Presbiterianismo e outras Igrejas Reformadas, além do Anglicanismo, que nascia na Inglaterra pela contestação à Igreja pelo Rei Henrique VIII (1491-1547).

Com seus fundamentos nas tradições contestadas, a Igreja Católica reagiu com o que ficou conhecido como Contra-Reforma, que se definiu com o Concílio Ecumênico realizado na cidade de Trento entre 1545 e 1563. O Concílio consolidou as visões católicas em resposta às contestações e definiu o protestantismo como heresia. Desde o século XII a Igreja combatia os cismáticos e apóstatas e os praticantes de heresias como o dualismo, gnosticismo, anabatismo, legalismo, antinomianismo e judaizantismo, perseguindo grupos que as praticavam, como os cátaros (ou albigensianos), valdenses, hussitas e lollardistas. O Concílio de Trento apenas reforçou esse combate e adicionou os protestantes à lista.

O ambiente moral, social e cultural propicia contraste chocante com épocas futuras, que é o tema do conto. O contato gera um jogo de percepção como o explorado por Edgar Allan Poe em "A Milésima Segunda Noite de Xerazade" (1850). Para tanto, fiz o narrador João Manuel de Lima escrever estas anotações em tom formal e legalista explicado pela sua finalidade, que é revelada apenas adiante. João transcreve os questionamentos que faz a um estranho homem de origem incerta -- que apenas diz vir "de longe"...

O título é o nome do símbolo da cobra devorando a própria cauda que figura no topo desta postagem, também escrito "oroboro" ou "uróboro". Simboliza ciclicalidade, continuidade, eterno retorno e autorreferência, mas também -- mais literalmente -- com a autodestruição. Foi utilizado por alquimistas e associado ao hermetismo e gnosticismo.

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