“Morrerei jovem, mas é como beijar Deus.”
- Lenny Bruce
Do diário de Felipe Manoel B____.
Rio de Janeiro, 19 de outubro de 18__.
Escrevo estas linhas no crepúsculo de meus dias, encerrado em paredes invisíveis, acorrentado ao conforto. Entretanto, não há tranquilidade nascida neste lugar que possa abater a terrível verdade que guardo. Recentemente vieram a mim informações concernentes à minha saúde, advindas dos mui solícitos homens da medicina que de mim trataram, que me instaram à precaução. Receio que meu estado seja tal que os homens que mencionei tenham realizado um esforço particular para cuidar de minha pessoa. Não desejo esquecer deles aqui, e deixo gravadas as minhas considerações para com eles logo neste princípio, em que ainda posso ser tratado com o mesmo respeito e dignidade, pois serão certamente poluídas com o decurso desta narrativa.
Anterior à narrativa em si, comando desde logo que esta entrada de minhas memórias escritas seja desentranhada de sua encadernação, ou que dela seja feita cópia integral, qualquer uma delas devendo ser então remetida à autoridade que dela melhor possa fazer uso no reparo de toda a tragédia para a qual contribuí, desgraçada mas certamente.
Esta história começa, como a própria história de um homem, com uma mulher, certamente a mais bela em que já pousei os olhos. Uma dama de maneiras e reputação primorosas que, inobstante, impediu que apenas isso formasse sua imagem. Era dotada de brilhantismo dificilmente encontrado, uma racionalidade elucidada que emergiria grande, não fosse limitada pelo peso da tradição imposta pelo marido.
Tive a felicidade de encontrá-la livre da presença do homem que mutilara sua liberdade, e me orgulha poder afirmar que muito de seus lampejos desde então se deram devido ao meu apoio. Era oriunda de terra distante, esquecida no mais das vezes pelos habitantes das terras em latitudes opostas, e trazia em seu ventre a semente de uma nova vida. A muitos poderia isso causar espanto, por imaginar que tal fato deveria ou efetivamente me causasse vergonha. Asseguro-lhes, outrossim, que a verdade é outra.
Vinha de uma colônia da Coroa à qual seu marido servira em armas. Uma mesma bala causou-lhe tanto pranto quanto esperança. Não achem que me alegra a morte de qualquer outro ser vivo; mas há vezes em que o fortuito atende a causas maiores que as daquilo em que manifestou seu toque aleatório. Os oficiais a buscaram para que lhe mostrassem o cadáver, mas também para acorrentá-la ao destino dele. Não sucederam em encontrá-la antes que eu mesmo o fizesse.
"Beijo de Ópio" é o segundo conto do livro. A estória inicia-se em 1842 e transcorre ao longo dos anos, ainda inserida na Era Vitoriana, e passa-se no Rio de Janeiro.
A Era Vitoriana levou o nome da Rainha Vitória (1819-1901), por ter governado o Império Britânico em seu auge, de 1837 até sua morte. O Império, pontilhando o mundo com suas colônias e domínios, era de tal extensão que mereceu os dizeres "o império em que o sol nunca se põe". Seu poderio marítimo e econômico definiu o período de paz chamado de Pax Britannica que é estendido normalmente até o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, e dentro desse período o Reino Unido desfrutou de prosperidade não apenas econômica mas cultural, influenciada pela popularização das tecnologias inovadoras da Revolução Industrial.
A próspera era de comércio marítimo propiciou que o uso do ópio, que assolava as colônias britânicas da Índia e China desde o século XVIII, escapasse para a Europa e Estados Unidos. Centros de imigrantes como Limehouse em Londres e as Chinatowns de New York e San Francisco tornaram-se pontos de entrada para a droga. A droga era proibida na China e contrabandeada para dentro do país por britânicos da Índia, e as tentativas chinesas de impedir o tráfico levaram à Primeira Guerra do Ópio, que em 1842 terminou com vitória inglesa expressada pelo Tratado de Nanquim, que cedeu a ilha de Hong Kong à Bretanha.
O texto parte da especulação de um comerciante brasileiro trazer das Índias carregamentos de ópio para o Rio de Janeiro. Especulação porque a droga só alcançaria o mercado brasileiro de forma marcante anos depois. Todavia, o comércio marítimo permitiria a entrada de cargas pequenas para tráfico. O comerciante, Felipe Manoel, descobre todavia que sua carga inclui um conteúdo inesperado que mudará sua vida.
O conto é apresentado como uma passagem do diário de Felipe. Para alcançar esse fim, procurei utilizar linguagem mais rebuscada e preciosista como demandavam os costumes da época. Tratando-se de uma confidência ou confissão, o narrador permite-se expressar sentimentos que de outra maneira nunca colocaria em papel, assim procurei revelar em certos pontos a angústia dele, como se lutasse contra o próprio decoro da época.
O título tem significado ambivalente, a princípio aludindo ao consumo do ópio - descrita por Thomas de Quincey (1785-1859) em seu "Confissões de um Comedor de Ópio Inglês" (1821) e expressa pela citação do comediante americano Lenny Bruce (1925-1966) a respeito de seu uso de heroína, um derivado do ópio. O outro significado faz referência a um elemento central da estória e razão principal da confissão de Felipe - alegoricamente, como uma droga seduz para ser consumida e depois consumir.
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