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29 de junho de 2010

Aspiração à inspiração (um poema)


eu quero a melhor fase da minha vida
eu quero o que ainda não tive
encontros com os amigos com risos e alegria
trabalhos ferozes e esforçados até altas horas da noite
e resultados de abrir sorrisos largos ao pai
dias chuvosos e cinzas em que sinto felicidade
ficar sem fazer nada apenas curtindo a sombra
amor que vai me fazer querer nunca mais separar
nunca mais brigar, nunca mais desistir
que me faça acreditar que eu não mereço
eu quero a melhor fase da minha vida
pra ter lágrimas no rosto de saudade quando velho
e um sorriso bobo de dar inveja aos moços

28 de junho de 2010

A Persistência da Memória, de Dalí

Foto de jbparker (Flickr). Visite sua galeria para tamanhos maiores.

A obra mais famosa do pintor espanhol Salvador Dalí (1904-1989), La persistencia de la memoria é uma pintura de óleo em tela de 24 por 33 centímetros, completada em 1931, e uma das obras-primas do Surrealismo.

Os notórios elementos de relógios de bolso se derretendo surgem em meio a recorrências nas obras de Dalí: a paisagem em camadas sobrepostas de céu, mar e solo, quebrada apenas por montanhas ao fundo; a profusão de formigas, sobre o relógio à esquerda; e o rosto derretido e distorcido ao centro.

O quadro foi pintado quando Dalí notou dentre as sobras de um jantar algum queijo se derretendo. Havendo em sua obra um jogo entre conceitos próprios de "duro" e "mole", a cena o inspirou a representar o estado "mole" com os relógios derretendo como uma espécie de metamorfose, explorando o tema da passagem do tempo. A descrição de Dalí para o quadro (excêntrica como o artista sempre foi) é "nada mais do que o mole, extravagante, solitário, paranóico-crítico queijo Camembert do espaço e tempo". Seu método paranóico-crítico, definido por volta de 1930, envolvia a auto-indução de alucinações para criar arte. Uma de suas citações famosas é "a diferença entre um louco e eu é que não sou louco".

A interpretação geral é a de que o "tempo mole" e a decadente infestação de formigas indica um relaxamento do tempo, uma contrariedade ao determinismo, uma contestação à sua rigidez, uma expressão de impermanência. É o tempo conforme percebido pelas pessoas através da memória e do sonho, indicado pelo rosto derretido, uma representação "mole" do rosto do próprio Dalí.

O quadro faz parte da coleção do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque desde 1934. Do comentário do Museu, "dominando o que chamou de 'os truques paralizantes usuais de enganar os olhos', Dalí pintou esta obra com 'a mais imperialista fúria de precisão', mas apenas, disse ele, 'para sistematizar a confusão e assim ajudar a desacreditar completamente o mundo da realidade'. Há, entretanto, um menear de cabeça para o real: os distantes penhascos dourados são aqueles na costa da Catalunha, o lar de Dalí".

O pintor desconstruiria sua obra mais famosa em "A Desintegração  da Persistência da Memória", de 1954, inundando a paisagem e manifestando sua fase "científica" partindo-a em blocos elementares.

26 de junho de 2010

"Tempo" em várias línguas


Segue uma lista da palavra "tempo" traduzida para várias línguas, utilizando as formidáveis ferramentas de idiomas da internet, particularmente o Webster's, o Google e a FreeLang. Em itálico, versões divertidas.

  • andhra: విడుత 
  • africâner: tyd
  • albanês: koha
  • alemão: zeit
  • amárico: gize
  • árabe: الوقت (al-Wqt)
  • armênio: ժամանակ (zhamanak) 
  • azerbaijano, turco: zaman
  • basco: denbora
  • bengali: সময় 
  • bielo-russo, eslovaco, esloveno, tcheco, ucraniano: час (chas)
  • boca grande não entra: tumpu
  • búlgaro, esloveno, macedônico, sérvio: време (vreme) 
  • catalão: temps
  • chef sueco (inglês): teeme
  • chinês (simplificado): 时间 (shíjiān)
  • chinês (tradicional): 時間 (shíjiān)
  • coreano: 시간 (sigan) 
  • crioulo haitiano: tan
  • croata: vrijeme
  • dinamarquês, norueguês, sueco: tid
  • galego, italiano, português: tempo
  • ekspreso, esperanto: tempo 
  • espanhol: tiempo
  • estoniano: aeg
  • finlandês: aika
  • francês: temps
  • galês: amser
  • georgiano: დრო (dro)
  • grego: χρόνος (chrónos) 
  • gripado: denbo
  • guarani, tupi: ara
  • havaiano: wa
  • hebraico: זמן 
  • hindi: समय (samaya) 
  • holandês: tijd
  • húngaro: idõ
  • iídiche: צייַט 
  • indonésio, malaio: waktu
  • inglês: time
  • interlíngua: tempore
  • irlandês: am
  • islandês: tíma
  • japonês: 時間 (jikan)
  • klingon: poH
  • latim: tempus 
  • leet: 73|\/|p0
  • letão, lituano: laiku
  • LIBRAS: bater com o dedo indicador no pulso da outra mão (indicando um relógio).
  • língua do P: pemtempopo ou petempepo
  • LOLcat (inglês): tiem
  • maltês: ħin
  • miguxês: TemPu
  • mongol: цаг улирал (tsag uliral)
  • Mussum: tempis
  • nahuatl (asteca): cahuitl
  • nórdico antigo: sinn 
  • persa: زمان
  • pirata: tempo, arr!
  • polonês: czasu 
  • quenya (élfico de Tolkien): lúmë 
  • quíchua (maia): kuti
  • romeno: timp
  • russo: время (vremya)
  • Seu Creysson: tempio
  • sindarin (élfico de Tolkien):
  • suaíle: wakati
  • tagalo: oras
  • tailandês: เวลา (welā)
  • twi: daa
  • urdu: وقت 
  • vietnamita: thời gian
  • volcano: wak

24 de junho de 2010

Formatação em revisão


Recebi ontem o livro revisado, sobre o que farei postagem futuramente, após fazer todas as alterações. Hoje tratarei de um aspecto curioso sobre a revisão, que é o método de apresentar as mudanças sugeridas ao autor. Cada revisor acaba por escolher seu método favorito, tendo alguns métodos vantagens sobre outros. Tentarei tratar de algumas das formatações e utilidades que já vi sendo usadas.

Marcação: o método mais simples. O revisor adota formatação para suas sugestões de alteração, como por exemplo sublinhar, negritar, cercar o trecho em colchetes ou chaves, mudar a cor ou tamanho do texto ou realçar, e estabelece o que cada formatação significa.

Exemplo de formatação e significados.
Realce verde: adição. Fonte vermelha e tachada: remoção. Fonte vermelha próxima de fonte azul: substituição. Realce amarelo seguido de expressão em colchetes: comentários.

Vantagens: 1) Se para escrever um texto pode ser usado o processador de texto mais simples (como o Bloco de Notas), o método de marcação também pode ser feito em qualquer programa, apesar de, quanto mais opções de formatação existirem, mais práticas serão as anotações.
2) A maleabilidade é grande, permitindo ao revisor tornar as anotações tão visíveis e claras quanto quiser, criando o seu próprio código personalizado de formatações e significados.

Desvantagens: 1) Trechos com muitas anotações podem ficar confusos e poluídos. 2) Dificuldade na sobreposição de revisões (por exemplo, uma palavra errada dentro de uma frase a ser reescrita). 3) Trabalhar com vários revisores significa trabalhar com vários códigos de formatações e significados.

Entre linhas: a alteração é sugerida em uma linha inserida abaixo da corrigida, usualmente com a sugestão imediatamente abaixo. A linha nova é marcada de maneira que não seja confundida com a do texto.


Vantagens: 1) O texto original não é alterado.
Desvantagens: 1) Pouco prático e trabalhoso. 2) Espaço restrito, exigindo linhas adicionais de revisão para sugestões ou comentários maiores. 3) As linhas adicionais aumentam a extensão do texto.
 
Comentários: as revisões são inseridas usando a função de comentários de processadores de texto.


Vantagens: 1) Revisão diretamente indicada no texto. 2) Facilidade de inserção e remoção de notas que se ordenam automaticamente. 3) Permite sobreposição de notas. 4) O comentário pode ser extenso.

Desvantagens: 1) Requer processadores de texto mais capazes, como o Word ou OpenOffice. 2) Deve haver também compatibilidade de programas e versões entre revisor e autor.

Controle de alterações: as revisões são feitas diretamente em um texto protegido com a função de controle de alterações de processadores de texto.


Vantagens: 1) Protege o texto contra qualquer alteração indesejada. 2) Funções de navegação ordenada de alteração a alteração. 3) Permite passar o mesmo arquivo para vários revisores, identificando quem fez cada alteração e quando foi feita.

Desvantagens: 1) Requer processadores de texto mais capazes, como o Word ou OpenOffice. 2) Deve haver também compatibilidade de programas e versões entre revisor e autor. 3) Uso requer familiaridade e prática.
 
Quando fiz revisões eu escolhi um misto, sinalizando adições ou remoções com marcações no texto com cores verde e vermelha, e substituições, dúvidas, notas e sugestões com comentários.

23 de junho de 2010

O conto "Primeiro-tenente"


     Há algum tempo, na infância do século XX, eu, como tenente do exército, servi meu país de um jeito bastante peculiar, que traz memórias de idêntico caráter, se não ainda mais dotadas de uma excentricidade que almejo conseguir colocar em palavras.
     Respondia, então, como Bastos. Segundo-Tenente Bastos, quero dizer. Já havia um tenente Rogério, e nomes de guerra não se repetem. Recordo-me muito bem de que ponderei a respeito de outros tantos Bastos que entrariam depois de mim, e que teriam seus nomes mutilados sem nenhum perdão, em nome da guerra fantasma para a qual estamos sempre preparados.
     Saí do belo treinamento de uma academia direto para o oficialato nu e cru, com todas as suas adversidades e problemas. De baixo, a ousadia e rebeldia velada dos praças, soldados a sargentos, que traduziam a própria incapacidade para ascensão nos postos com uma agressividade contida em relação a aqueles “garotos” que tinham caído no meio do comando, sem passar pelos maus bocados antes. Apesar de muitos oficiais terem sido praças, na atualidade isso não mais acontecia. Sabia muito bem disso, porque nesta realidade recente me incluo.
     Nunca, de fato, havia experimentado a ação que vem junto com o recrutamento em níveis mais baixos. Mas, de igual modo, não tive o tempo suficiente para apreciar todas as idiossincrasias de ser um comandante desafiado, pois de cima vieram outros fatores, em menor número mas em maior peso, que desviaram por completo toda a minha atenção.
     Ele se chamava Capitão Monteiro. Descobriria posteriormente que o nome oculto por trás da dignidade era Roberto. Pouco depois do outro oficial que me apresentou a meu novo superior deixar nossa companhia, o Capitão Monteiro deixou forçosamente cristalino que eu deveria me endereçar a ele apenas como Capitão. Qualquer adendo que extrapolasse o compulsório “senhor”, antes ou depois do denominativo de sua capitania, seria por ele considerado como insubordinação, com todas as conseqüências originadas disso. Como bom aluno de minha academia, aprendi a lidar muito bem com essa exacerbação autoproclamada, que vem com o desgaste de muitos anos em um posto.
     Minha designação, em toda a sua extensão, devia-se à morte em ação de um tenente subordinado ao Capitão. Substituir por este motivo um oficial preexistente é, com certeza, a pior forma de começar um novo serviço. A despeito disso, em face do novo ambiente em que trabalhava, passei a buscar a confraternização com os companheiros de farda, a fim de garantir a melhor harmonia em trabalhos futuros. Não sem certo pesar, que por motivos óbvios impedi de se manifestar, descobri que minha presença ali incomodava a boa maioria dos praças, e gerou, talvez exatamente por isso, a subserviência absoluta dos sargentos, que tinham agora o que usar para humilhar os soldados pelas minhas costas. Mas até eles, creio, não nutriam por mim real respeito
.


"Primeiro-tenente" é o terceiro conto do livro. A estória se passa no Brasil no início do século XX. A localização precisa é deixada sem detalhar, mas a inspiração para o conto veio de uma especulação sobre a Revolução Federalista no sul do país. 

A Revolução Federalista, como outros movimentos semelhantes, envolveu um embate violento entre as forças armadas e os revoltosos. Eliminada a revolta, a presença destas forças deveria ser continuada sobre pontos estratégicos e focos da revolta, para evitar uma ressurreição do movimento. Sem a fiscalização apropriada, estas células militares, comandadas por homens corruptíveis, poderia assumir o controle da região não como uma presença de paz, mas como uma presença dominadora. Este fenômeno vem ocorrendo com forças de ocupação até os nossos dias.

A ideia para o conto surgiu após meu contato com o direito penal militar, que difere do direito penal por fundar-se nos princípios de ordem militar, como hierarquia e disciplina. Os procedimentos dos Inquéritos Policiais Militares, conduzidos de forma impecável pelos oficiais envolvidos, e diversos casos de verdadeira dominação promovida por oficiais em comarcas do inteiror me levou a conjeturas sobre um procedimento semelhante realizado em épocas em que a fiscalização era ainda mais precária.

No conto, o narrador, o segundo-tenente Rogério Bastos, descreve todo o seu serviço junto ao abusivo Capitão Roberto Monteiro, desde o início de sua subordinação até o desfecho que esclarece a natureza exata de seu serviço. Procurei utilizar uma linguagem adequada ao personagem, que fosse precisa e cerimoniosa como um militar dirigindo-se a um superior.

O título alude a uma evidente promoção do tenente protagonista; a intenção é exatamente provocativa, para o leitor imaginar se essa promoção é ou não procurada ou obtida.

22 de junho de 2010

Visita à aurora paranaense

Hoje estive em Paranaguá, na esperança de encontrar o único livro que falta de meu bisavô para meu projeto de publicar sua obra completa. Discutirei este e outros projetos em postagem própria. Sobre a viagem, fiz visita improdutiva à Biblioteca Municipal Leôncio Correia, e, talvez graças à oportuna greve dos funcionários públicos na cidade, o Centro de Letras estava fechado. Não posso dizer que meu último e principal destino foi totalmente improdutivo: logo que cheguei, estive no Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá.


A despeito de ter me informado um dia antes que o estabelecimento estaria aberto, fui informado que a biblioteca estava passando por um recadastramento e higienização do acervo. Mas a funcionária me orientou a retornar no período da tarde e tratar com o "sr. José Maria", o que fiz.

O senhor José Maria Farias de Freitas estava tratando com outra pesquisadora, Ethel Frota, esta tendo assumido uma pesquisa ousada sobre um fato de nossa história para tratar em um romance. Ele me recebeu graciosamente e após lhe explicar o objeto de minha pesquisa, disse não ter o livro que procurava, mas me permitiu consultar a coleção da revista parnanguara "O Itiberê". Em pesquisas anteriores, havia encontrado poemas de meu bisavô em exemplares desta revista, e a viagem logo prometia não ser de todo perdida. E não foi: encontrei cinco poesias que não havia ainda encontrado, obrigando-me a manifestar aqui meus agradecimentos ao sr. José Maria. Transcrevo a seguir, ipsis literis, um dos poemas de meu bisavô.

TEU RETRATO

Esses teus olhos, flor, cujo negrume
Idéa dá do lucto de minh’alma,
Têm todo aquelle extraordinario lume
Das estrellas do Azul em noite calma.

Essa tua bocca rubida o perfume
Raro contêm de viridente palma;
A tua voz recorda a voz de um nume
Cuja doçura vendavaes acalma.

Teus cabellos são de ebano, tão pretos
Como a melancolia dos sonetos
Em que descrevo o meu amor adverso.

Teus pés, tuas mãos, teu corpo... Fada,
E’s a belleza personificada
Que eu emmolduro dentro de meu verso.

Adolpho Werneck
"O Itiberê" nº 35, Março de 1922

21 de junho de 2010

Mestres do Tempo: H. G. Wells

O escritor e historiador inglês Herbert George Wells (1866-1946) é um dos pais da ficção científica, tendo escrito sobre temas diversos como invasões alienígenas, viagens espaciais, experimentos bizarros químicos e físicos resultando em animais gigantes ou transformados em homens, invisibilidade e antigravidade. E sobre o tempo, não apenas com uma magistral obra sobre viagem no tempo, mas também com estórias futuristas, antecipando - alguns chegam a dizer profetizando - ocorrências futuras, realidades paralelas, utopias e distopias e contato entre épocas diferentes.

Não bastando sua contribuição imortal para a literatura, Wells era um acadêmico capaz. Curiosamente, estudou biologia com Thomas Henry Huxley (1825-1895), avô de Aldous Huxley (1894-1963), escritor de "Admirável Mundo Novo" e, graduado em Zoologia, posteriormente tornou-se professor, estando entre seus alunos Alan Alexander Milne (1882-1956), criador de Winnie-the-Pooh - conhecido no Brasil como "Ursinho Puff". 

Escreveu obras sobre jogos de miniaturas, principalmente Floor Games (1911) e Little Wars (1913). Descontente com a qualidade de obras de história após a Primeira Guerra Mundial, produziu um texto histórico monumental intitulado "O Contorno da História" (The Outline of History, 1919), pelo qual seria lembrado se não fosse sua produção literária. A obra foi popularizada em uma versão menor chamada "Uma Pequena História do Mundo" (A Short History of the World, 1922), ambas sendo publicadas até hoje. A visão política de Wells era declaradamente socialista, com ideias deste caráter propagando-se por toda a sua obra. Defendia uma organização política mundial, cuja instituição julgava inevitável, mas posicionou-se contra o modelo marxista.

Segue um resumo cronológico de obras de H. G. Wells que tratam do tempo. A lista não pretende ser exaustiva, mas tratar dos principais textos deste mestre do tempo. Tentarei não revelar os desfechos das estórias, a fim de não estragar surpresas de potenciais leitores.
  • Os Argonautas Crônicos (The Chronic Argonauts, 1888). O Dr. Moses Nebogipfel toma residência em uma casa abandonada da cidade galesa de Llyddwdd. O Reverendo Elijah Ulysses Cook simpatiza com ele, mas o resto da cidade suspeita de bruxaria e invadem sua oficina, mas o Doutor e o Reverendo desaparecem. Três semanas depois, o Reverendo ressurge e conta o que aconteceu neste período, revelando como escaparam e a natureza "anacrônica" do Dr. Moses.
  • A Máquina do Tempo (The Time Machine, 1895). Um inventor inglês cria uma máquina com a qual consegue viajar na dimensão do tempo , tornando-se o Viajante do Tempo. Ele viaja até o ano 802.701, onde ele encontra os Eloi, raça de criaturas semelhantes a crianças andróginas que vivem sem trabalhar graças à tecnologia. Procurando retornar descobre que sua máquina foi roubada pelos Morlocks, outra raça formada por brutos simiescos e fotófobos. O Viajante alcança uma conclusão sobre as raças, recupera sua máquina e viaja ainda mais para o futuro, vendo os últimos habitantes da Terra e o fim do planeta.
  • A Estrela (The Star, 1897). Notícias de um corpo celeste luminoso no céu vão se tornando cada vez mais alarmantes, até ser revelado que se trata de uma estrela. Em sua rota a estrela consome primeiro Netuno, depois Júpiter. Um matemático revela que a estrela vai se aproximar ou mesmo colidir com a Terra. A luminosidade e calor crescem, eliminando as noites e o inverno, depois derretendo o gelo em toda a Terra. A estrela se aproxima mais causando ocorrências cataclísmicas no planeta, com consequências drásticas apreciadas por observadores inusitados.
  • Uma Estória da Idade da Pedra (A Story of the Stone Age, 1897). Na Idade da Pedra, homens e animais tinham nomes e falavam. Ugh-lomi, um homem das cavernas, é exilado por matar Uya, o líder da tribo. Sozinho, ele descobre que ao atar uma pedra a um galho, ele cria uma arma. Inventor e detentor do primeiro machado, ele retorna para sua tribo, com o propósito de tornar-se o novo líder.
  • Uma Estória dos Dias Iminentes (A Story of the Days to Come, 1897). Um rico senhor contrata um hipnotizador para fazer a filha escolher um pretendente melhor do que o homem pobre pelo qual está apaixonada. O casal descobre o plano e foge para o campo, mas logo retornam para a cidade, tentando manter um bom estilo de vida até acabarem as economias. Então acabam no submundo de uma Londres futurista como trabalhadores braçais, situação que só se descomplica com uma ajuda inesperada. 
  
Capa de "Contos de Espaço e Tempo" (1899), que publicou as três estórias acima.
  • O Dormente Desperta (The Sleeper Awakes, 1899 e 1910). O insone inglês Graham entra em um transe em 1897, despertando em 2100. Seu despertar gera comoção e ele é levado ao Conselho Branco, que revela que o dinheiro de Graham foi investido ao longo do tempo a ponto de estabelecer uma nova ordem política e econômica mundial, sendo ele por direito o proprietário e mestre do mundo. Ele é libertado por agentes de Ostrog, um líder rebelde, cujas reais intenções descobre depois.
  • Os Encouraçados de Terra (The Land Ironclads, 1903). Um tenente numa trincheira, em um momento de calmaria, diz a um correspondente de guerra que seu povo irá vencer por estarem mais acostumados a atirar e cavalgar, enquanto seus inimigos são civilizados demais. Todavia, irrompem no campo de batalha uma dúzia de veículos blindados e armados que capturam o exército inimigo inteiro. A estória conclui com as considerações dos capturados ao verem seus captores saindo dos veículos.
  • O Novo Acelerador (The New Accelerator, 1907). Um usuário do novo estimulante do Professor Gibberne descreve seus efeitos - positivos e negativos.
  • A Guerra no Ar (The War in the Air, 1908). Uma guerra começa pelo domínio dos céus, quando a agressiva Alemanha revela forças aéreas e a situação escala ao redor do globo. O protagonista Bert Smallways cai no balão de ar quente de Alfred Butteridge, o aviador inglês detentor do segredo das máqunas voadoras. O balão cai e Bert é capturado pelos alemães que pensam que ele é Alfred. Seu disfarce cai e ele testemunha a "Batalha do Atlântico Norte" e o bombardeio de Nova Iorque. Bert depois retorna para suas terras natais devastadas, e a história termina avançando para o futuro e mostrando o que restou da civilização.
  • Os Primeiros Homens na Lua (The First Men in the Moon, 1910). O negociante Sr. Bedford descobre que o cientista Dr. Cavor produziu um material chamado de cavorita, com propriedades antigravitacionais. Eles constróem uma espaçonave esférica com a qual viajam para a Lua. Lá, a superfície congelada derrete e plantas crescem rapidamente até se tornarem uma selva. Eles ficam com fome e ingerem um fungo que os deixam intoxicados, e são capturados por homens-inseto chamados Selenitas. Recuperam-se e fogem, mas Cavor fica para trás e é recapturado, enquanto Bedford escapa e conta a história, com contribuições inesperadas de seu colega.
  • Homens Como Deuses (Men Like Gods, 1923). Sr. Barnstaple, jornalista de "O Liberal", é parte de um grupo que num acidente são transportados para o mundo de Utopia. No passado, chamado de "Dias de Confusão", Utopia foi como a Terra, mas havia se tornado um mundo avançado com um governo mundial socialista, e uma ciência avançada que eliminou a nocividade da natureza. Assim que Barnstaple começa a afeiçoar-se ao mundo, os utopianos adoecem e os visitantes são determinados como a causa. Os terráqueos são presos e a fuga de Barnstaple é a resolução da estória.
  • O Sonho (The Dream, 1924). Sarnac, habitante de uma utopia 2000 anos no futuro, visita um sítio arqueológico onde ocorreu uma tragédia no passado. Ponderando sobre o homem antes da "iluminação", Sarnac dorme e sonha a vida inteira de Harry Mortimer Smith, da infância até sua morte após a Primeira Guerra Mundial.
  • A Estranha Estória do Jornal de Brownlow (The Queer Story of Brownlow's Newspaper, 1932). Em 1931, Brownlow recebe um jornal datado de 10 de novembro de 1971, e vai descobrindo os avanços e maravilhas que o futuro reserva enquanto lê as notícias de 40 anos no futuro.
  • A Forma das Coisas Iminentes (The Shape of Things to Come, 1933). O Dr. Philip Raven descreve sonhos proféticos sobre fatos de 1933 até 2106. Uma Segunda Guerra Mundial começa em 1940 e termina com o colapso das nações envolvidas e uma praga que aniquila grande parte da humanidade em 1956. A civilização decai mas é recuperada pela "Ditadura do Ar", formada pelos detentores dos sistemas de transporte, principalmente aeronaves, que são entusiastas da ciência e estabelecem um governo mundial. Um século depois, a Ditadura é derrubada, sinais de autoridade desaparecem e surge uma nova sociedade utópica.

12 de junho de 2010

Semana fora

Na próxima semana não poderei fazer postagens, então seguem três tópicos para compensar pela ausência.


DIA NA HISTÓRIA
Duas páginas com listas de eventos que ocorreram em determinado dia na história: a página principal da Wikipédia; e a página "Hoje na História" do 10emTudo.


CITAÇÕES SOBRE O TEMPO
O Citador reúne citações em diversas categorias relacionadas ao tempo: amanhã, antepassados, dia, efêmero, eternidade, futuro, história, historiador, idade, juventude, lembrança, memória, momento, passado, posteridade, presente, previsão e velhice.

Ah, e claro: tempo.


UM SONETO

roubaram um momento meu
que talvez nunca usaria
mas que talvez poderia
perder de um jeito meu

roubaram um bom momento
ou talvez um mal momento
ou talvez um só momento
que teria ao lado seu

roubaram em um momento
um momento e em outro
a perda percebi

roubaram-me um momento
era só mesmo o momento
um momento que perdi

11 de junho de 2010

Mais do que mera coincidência


O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) dedicou muita atenção a aspectos mais metafísicos da psicologia humana, como o inconsciente e a espiritualidade, que participam dos fundamentos de sua psicologia analítica. Dentre as suas contribuições para a Psicologia estão os complexos, arquétipos, o inconsciente coletivo e a noção de sincronicidade.

Apesar de já ter trabalhado no tema anos antes, foi em 1952 que Jung publicou um artigo intitulado "Sincronicidade - Um Princípio de Conexão Acausal". Jung chama de sincronicidade "a ocorrência temporalmente coincidente de eventos acausais", "paralelismo acausal" ou "coincidência significativa". Ocorre sincronicidade quando dois acontecimentos ocorrem ao mesmo tempo - uma coincidência no perfeito significado da palavra, co-incidência - sem que um seja causa direta ou indireta do outro, e em que a probabilidade para a simultaneidade seja irrisória. Assim, são três os requisitos para os chamados eventos sincronísticos: simultaneidade, acausalidade, e improbabilidade.
 
Jung dá um exemplo no artigo: " uma jovem mulher que estava tratando teve, em um momento crítico, um sonho em que lhe era presenteado um escaravelho dourado. Enquanto ela me contava esse sonho, eu estava sentado de costas para a janela fechada. Subitamente ouvi um barulho atrás de mim, como uma batida leve. Virei-me e vi um inseto voador batendo contra o vidro pelo lado de fora. Abri a janela e peguei a criatura no ar assim que voou para dentro. Era a analogia mais próxima a um escaravelho dourado que alguém encontraria em nossas latitudes, um besouro escarabeídeo, a comum rose chafer (Cetonia aurata), que, contra seus hábitos usuais evidentemente sentiu o impulso de entrar em um quarto escuro naquele momento particular. Devo adimitir que nada parecido aconteceu comigo antes ou desde então".

De acordo com Jung, o conceito completaria um sistema - conjuntamente com arquétipos e o inconsciente coletivo - que descreveria uma dinâmica governante subjacente a toda a experiência e história humanas. Do livro "Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo" (1934): "Minha tese então, é como segue: em adição à nossa consciência imediata, que é de uma natureza profundamente pessoal e que acreditamos ser a única psiquê empírica (mesmo se agregarmos o inconsciente pessoal como um apêndice), existe um segundo sistema psíquico de uma natureza coletiva, universal e impessoal que é idêntica em todos os indivíduos. Este inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente mas é herdado. Ele consiste de formas pré-existentes, os arquétipos, que só podem se tornar conscientes secundariamente e que dão forma definitiva a certos conteúdos psíquicos".

A sincronicidade seria uma das consequências desse sistema, conectando as ocorrências ligadas não por causalidade - verificáveis cientificamente - mas pelo significado. A interpretação do modelo proposto por Jung leva a uma perigosa proximidade do pensamento mágico, ou causalidade mental, em que se acredita em correlações inexistentes ou mesmo impossíveis entre pensamentos e ações e ocorrências reais. O próprio exemplo de Jung permite tal interpretação, se implicar-se que a paciente ou ele próprio atraíram o escaravelho para a janela por simples força de pensamento, ou que a paciente previu que o inseto bateria na janela. O próprio Jung determinou que o princípio era acausal, ou seja, não é baseado em e também não gera uma relação de causalidade entre os eventos, mas isso não é geralmente levado em consideração e o princípio é popular entre místicos contemporâneos adeptos também de mencionar a noção de inconsciente coletivo.

Em vez disso, Jung dizia que as pessoas, influenciadas pelos arquétipos através dos quais compartilham o inconsciente coletivo, manifestariam sentimentos, impressões, comportamentos, e mesmo pensamentos e ações em comum com outras, em momentos distintos ou coincidentes. Quando ocorrem ao mesmo tempo, ocorre sincronicidade: pessoas movidas por fatores inconscientes, que as levam a ações que concorrem a um mesmo evento. Isto difere de fatos que ocorrem separadamente, não motivados por fatores psicológicos, assim pode-se falar em uma "causalidade sincronística", ou seja, que a explicação para um evento - determinado, necessariamente, pela vontade de pessoas - venha da influência de seus arquétipos inconscientes, e em uma sincronicidade de significado, em que se encaixa o exemplo do escaravelho - a menos que escaravelhos participem também do inconsciente coletivo.

O significado tem fundação na percepção, que é interpretada pela racionalidade conforme todos os fatores que influenciam a inteligência humana. Se o sistema de Jung for aceito, o inconsciente coletivo é um desses fatores e o que percebemos, a forma dessa percepção, e o significado final gerado para os eventos, é definido por algo inerente ao funcionamento da mente humana ao longo do tempo.


O personagem Dennis, o Pimentinha (Dennis the Menace em inglês, literalmente "Dennis a Ameaça") criado por Hank Ketcham (1920-2001) estreou em 16 jornais dos Estados Unidos em 12 de março de 1951. Três dias depois, em 15 de março de 1951, a tira do personagem Dennis the Menace de David Law estreou na edição nº 452 da revista The Beano. Ambos eram garotos travessos usando macacão e listras, o estadunidense com camiseta listrada e o britânico com listras no macacão. Não foi provada qualquer influência de um sobre outro.

E se nossas mentes forem apenas ecos em uma grande caverna da inconsciência?

10 de junho de 2010

Bastante, não pouco


Sendo desde a infância um apreciador de Edgar Allan Poe, pode parecer inusitado que não procurei o conto como formato inicial, tendo antes enveredado por uma tentativa de romance malfadada. Analisando retroativamente, vejo como o tal romance era na verdade composto de vários contos entrelaçados, e portanto descaracterizados. Eu não sabia disso na época, fui me descobrir como contista apenas anos depois, e me definir como tal ainda mais tarde.

Não segui, portanto, Poe como o faria um acadêmico ou um discípulo. Lembro-me de estar frustrado com aquela história "comprida demais" e sentado para apenas contar uma outra história "logo de uma vez". O objetivo impulsionou a narrativa, gerou apenas os elementos suficientes, descartando os elementos supérfluos, visando apenas emergir realizado ao fim do texto. E emergiu, propiciando minha primeira percepção das verdadeiras qualidades do conto.

Considero infeliz a noção de que o conto está sendo revitalizado não por tais qualidades, mas pela pressa que caracteriza cada vez mais nossos tempos modernos. O risco é do interesse no conto ser utilitarista como jantares prontos de microondas, bronzeamento em spray ou o homeopático Twitter. A noção do conto, então, já nublada pela própria natureza, fica ainda mais prejudicada, atrelada meramente ao seu tamanho. O utilitarismo então reincide em termos de quantia: mais significa melhor, logo um romance é melhor que um conto.


O tratamento acadêmico pode ser mencionado mas será em vão. A questão da extensão do texto, não é dispensável, do contrário, é fator essencial mas por outros motivos. O definidor do conto moderno é Edgar Allan Poe (1809-1849), que tratou a extensão antes de qualquer outro fator em sua "Filosofia da composição" (1846): "A consideração inicial é aquela da extensão. Se qualquer obra literária é longa demais para ser lida em uma sentada, nós devemos nos contentar e dispensar o efeito imensamente importante derivado da unidade de impressão - porque, se duas sentadas forem requeridas, os problemas do mundo interferem, e tudo semelhante a totalidade é destruído de uma vez".

Poe defendia o que chamou de unidade de efeito ou impressão, a força que o texto, ao longo de uma única leitura, fornece ao efeito final que é seu objetivo. Em sua resenha sobre a obra "Twice-told Tales" (1837/42) de Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Poe escreve: "Precisamos apenas dizer aqui, sobre este tópico, que, em quase todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância. É claro, ademais, que esta unidade não pode ser exaustivamente preservada em produções cuja apreciação não possa ser completada em uma sentada. Nós podemos continuar a leitura de uma composição em prosa, pela natureza mesma da prosa em si, por muito mais tempo do que podemos perseverar, por qualquer bom propósito, na apreciação de um poema". Conclui adiante: "A brevidade extrema vai degenerar no epigramatismo; mas o pecado do comprimento extremo é ainda mais imperdoável. In medio tutissimus ibis". A frase latina significa: "no meio viaja-se com a maior segurança".


Anton Tchekhov (1860-1904) concorda no aspecto da brevidade mas oferece um contraponto ao modelo de Poe, no sentido de gerar o efeito ou impressão não no final do conto, mas ao longo dele, diminuindo o tom no final muitas vezes com ocorrências triviais. Isto não remove o efeito como objetivo do conto, mas deslocar o clímax do final faz com que o texto reconduza à normalidade que havia antes do texto, salientando sua condição de passageiro. Tchekhov também divergia de Poe no sentido de que para alcançar o efeito do texto, considerava importante o que era deixado de fora. Em carta de 1º de abril de 1890 para Alexey Suvorin, ele diz: "Veja, para representar ladrões de cavalo em 700 linhas eu devo a todo tempo falar e pensar no tom deles e sentir no espírito deles, por outro lado, se introduzir subjetividade, a imagem se torna borrada e a estória não vai ser compacta como todos os contos deveriam ser. Quando escrevo eu conto inteiramente com o leitor adicionar por si mesmo os elementos subjetivos que faltam à estória". Uma frase indicada como sendo de uma carta dele de 1888 a Leontyiev Shchleglov (não encontrei esta carta) é: "nos contos é melhor não dizer o suficiente do que dizer demais". Manifestação máxima disso talvez seja a prática de Tchekhov deixar contos sem conclusão ou desfecho, permitindo-o ao leitor.

Em "Notícia da atual Literatura Brasileira - Instinto de Nacionalidade" (1873), Machado de Assis (1839-1908) disse do conto: "É gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade, e creio que essa mesma aparência lhe faz mal, afastando-se dele os escritores, e não lhe dando, penso eu, o público toda a atenção de que ele é muitas vezes credor". 

Mencionei que abordar a discussão acadêmica seria em vão exatamente pelo público não partilhar dela. A aproximação mercadológica de um livro tem o efeito de convertê-lo em produto, em concorrência com os outros. Dentre as várias qualidades procuradas, várias não se referem à qualidade do texto. Uma dessas qualidades é a extensão do texto, o tamanho do volume. A qual fim se destina o livro? Quanto tempo há disponível para a leitura? Busco satisfação imediata, ou algo cumulativo a longo prazo? É neste ponto que Poe e Tchekhov e o leitor utilitarista se aproximam, a brevidade desejável literariamente acaba alcançando alguma recepção pelo leitor-consumidor.

Do impulso de contar a história "logo de uma vez", a minha concepção de conto maturou para elogiar genuinamente a brevidade, e a capacidade de apreciar um autor não apenas pelo que escreve, mas também pelo que deixa de escrever.

9 de junho de 2010

O conto "Beijo de Ópio"

“Morrerei jovem, mas é como beijar Deus.”
- Lenny Bruce

Do diário de Felipe Manoel B____.
Rio de Janeiro, 19 de outubro de 18__.

     Escrevo estas linhas no crepúsculo de meus dias, encerrado em paredes invisíveis, acorrentado ao conforto. Entretanto, não há tranquilidade nascida neste lugar que possa abater a terrível verdade que guardo. Recentemente vieram a mim informações concernentes à minha saúde, advindas dos mui solícitos homens da medicina que de mim trataram, que me instaram à precaução. Receio que meu estado seja tal que os homens que mencionei tenham realizado um esforço particular para cuidar de minha pessoa. Não desejo esquecer deles aqui, e deixo gravadas as minhas considerações para com eles logo neste princípio, em que ainda posso ser tratado com o mesmo respeito e dignidade, pois serão certamente poluídas com o decurso desta narrativa.
     Anterior à narrativa em si, comando desde logo que esta entrada de minhas memórias escritas seja desentranhada de sua encadernação, ou que dela seja feita cópia integral, qualquer uma delas devendo ser então remetida à autoridade que dela melhor possa fazer uso no reparo de toda a tragédia para a qual contribuí, desgraçada mas certamente.
     Esta história começa, como a própria história de um homem, com uma mulher, certamente a mais bela em que já pousei os olhos. Uma dama de maneiras e reputação primorosas que, inobstante, impediu que apenas isso formasse sua imagem. Era dotada de brilhantismo dificilmente encontrado, uma racionalidade elucidada que emergiria grande, não fosse limitada pelo peso da tradição imposta pelo marido.
     Tive a felicidade de encontrá-la livre da presença do homem que mutilara sua liberdade, e me orgulha poder afirmar que muito de seus lampejos desde então se deram devido ao meu apoio. Era oriunda de terra distante, esquecida no mais das vezes pelos habitantes das terras em latitudes opostas, e trazia em seu ventre a semente de uma nova vida. A muitos poderia isso causar espanto, por imaginar que tal fato deveria ou efetivamente me causasse vergonha. Asseguro-lhes, outrossim, que a verdade é outra.
     Vinha de uma colônia da Coroa à qual seu marido servira em armas. Uma mesma bala causou-lhe tanto pranto quanto esperança. Não achem que me alegra a morte de qualquer outro ser vivo; mas há vezes em que o fortuito atende a causas maiores que as daquilo em que manifestou seu toque aleatório. Os oficiais a buscaram para que lhe mostrassem o cadáver, mas também para acorrentá-la ao destino dele. Não sucederam em encontrá-la antes que eu mesmo o fizesse.


 "Beijo de Ópio" é o segundo conto do livro. A estória inicia-se em 1842 e transcorre ao longo dos anos, ainda inserida na Era Vitoriana, e passa-se no Rio de Janeiro.

A Era Vitoriana levou o nome da Rainha Vitória (1819-1901), por ter governado o Império Britânico em seu auge, de 1837 até sua morte. O Império, pontilhando o mundo com suas colônias e domínios, era de tal extensão que mereceu os dizeres "o império em que o sol nunca se põe". Seu poderio marítimo e econômico definiu o período de paz chamado de Pax Britannica que é estendido normalmente até o início da Primeira  Guerra Mundial em 1914, e dentro desse período o Reino Unido desfrutou de prosperidade não apenas econômica mas cultural, influenciada pela popularização das tecnologias inovadoras da Revolução Industrial.

A próspera era de comércio marítimo propiciou que o uso do ópio, que assolava as colônias britânicas da Índia e China desde o século XVIII, escapasse para a Europa e Estados Unidos. Centros de imigrantes como Limehouse em Londres e as Chinatowns de New York e San Francisco tornaram-se pontos de entrada para a droga. A droga era proibida na China e contrabandeada para dentro do país por britânicos da Índia, e as tentativas chinesas de impedir o tráfico levaram à Primeira Guerra do Ópio, que em 1842 terminou com vitória inglesa expressada pelo Tratado de Nanquim, que cedeu a ilha de Hong Kong à Bretanha.

O texto parte da especulação de um comerciante brasileiro trazer das Índias carregamentos de ópio para o Rio de Janeiro. Especulação porque a droga só alcançaria o mercado brasileiro de forma marcante anos depois. Todavia, o comércio marítimo permitiria a entrada de cargas pequenas para tráfico. O comerciante, Felipe Manoel, descobre todavia que sua carga inclui um conteúdo inesperado que mudará sua vida.

O conto é apresentado como uma passagem do diário de Felipe. Para alcançar esse fim, procurei utilizar linguagem mais rebuscada e preciosista como demandavam os costumes da época. Tratando-se de uma confidência ou confissão, o narrador permite-se expressar sentimentos que de outra maneira nunca colocaria em papel, assim procurei revelar em certos pontos a angústia dele, como se lutasse contra o próprio decoro da época.

O título tem significado ambivalente, a princípio aludindo ao consumo do ópio - descrita por Thomas de Quincey (1785-1859) em seu "Confissões de um Comedor de Ópio Inglês" (1821) e expressa pela citação do comediante americano Lenny Bruce (1925-1966) a respeito de seu uso de heroína, um derivado do ópio. O outro significado faz referência a um elemento central da estória e razão principal da confissão de Felipe - alegoricamente, como uma droga seduz para ser consumida e depois consumir.

8 de junho de 2010

Pequena morte com um corte de papel

A Morte leva um autor antes que termine. Edward Hull, 1827.

Não considero um exagero comparar a conclusão de um texto a uma petite mort, metáfora francesa para o orgasmo. Uma vez inspirado, o anseio de fazer as ideias saírem só se resolve efetivamente na finalização do texto, e o resultado será tão prazeroso quanto for o envolvimento e investimento do autor. Como o orgasmo, ele pode ser insatisfatório, ou de qualidade ilusória, gerando arrependimento posterior. Todo o ato de escrever pode ser comparado ao sexo: depois de algum trabalho, obtém-se um resultado prazeroso a curto prazo - e às vezes um filho a longo prazo. Assim, o escritor pode pretender continuar nas suas obras como o pai continua nos filhos; pequenas mortes para evitar a maior.

A "pequena morte" é uma perda temporária do eu, do si-mesmo. Momentaneamente, a pessoa se desconecta dos traços e fatores que compõem sua personalidade e experimenta uma sensação de alívio e libertação. O termo, assim, já foi utilizado por extensão a outras experiências semelhantes, como a "morte do ego", estado alcançado através do uso de drogas, privação sensorial ou de sono, e meditação ou oração profundas, do qual o Nirvana budista ou o Moksha jainista não deixam de ser exacerbações, ou como os conceitos da psicologia de despersonalização, desrealização e dissociação, em que as percepções de si e do mundo se alteram.

O teórico literário Roland Barthes (1915-1980) utilizou o termo para descrever a experiência ideal de um leitor em relação à literatura, a sua jouissance - que pode felizmente ser traduzido por "gozo", já que a palavra francesa tem também conotação sexual. Em seu "O Prazer do Texto" (1975), ele separa "textos de prazer" de "textos de gozo": "vindo da psicanálise, um meio indireto de fundar a oposição do texto de prazer do texto de gozo: o prazer é dizível, o gozo não é". O "texto de gozo" é aquele em que a leitura sofre um corte, coupure, causando uma série de reflexões que arrasta o leitor para um "lugar de gozo" além das possibilidades da linguagem.

Barthes tratou do lado do autor mais amplamente em seu "A Morte do Autor" (1967). Sua essência está contida na afirmação "dar um autor a um texto é impor-lhe um limite". Segundo ele, leitores devem separar o texto de seu autor para livrar-se de uma interpretação tendenciosa, conduzindo sua experiência de leitura pelas próprias impressões e sentimentos, em vez de se submeter aos gostos e impulsos do autor: "nós sabemos agora que um texto não é como uma linha de palavras, soltando um sentido único, de alguma sorte teológico (que seria a "mensagem" do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam diversos escritos, nenhum dos quais é original: o texto é um tecido de citações, resultado de mil camadas de cultura". Assim se coloca contra "autor" como radical de "autoridade".

Michel Foucault (1926-1984), em "O que é um Autor?" (1969) oferece um contraponto a essa evolução histórica que eliminaria o autor como necessário ao texto, dizendo que há uma função do autor: "o nome de um autor não é simplesmente um elemento em um discurso (capaz de ser ou sujeito ou objeto, de ser substituído por um pronome, ou afins); ele desempenha um certo papel em relação ao discurso narrativo, garantindo uma função classificatória. Tal nome permite a alguém agrupar um certo número de textos, defini-los, diferenciá-los de e contrastá-los com os outros. Em adição, estabelece um relacionamento entre os textos".

 Barthes e Foucault.

Levanto a possibilidade dessa desconexão momentânea experimentada em relação à obra literária, por parte do autor, ser estendida. Mais do que um alívio prazeroso, como um exercício de descaracterização da pessoa do criador, visando eliminar a contaminação do texto com elementos de sua personalidade e de sua própria vida. Eliminar completamente a conexão criador-criatura é impossível exatamente pelo nexo causal entre eles, mas creio ser possível - e desejável - treinar o processo criativo de modo que o "eu" do autor não surja na estória que conta.

De forma semelhante à atuação, em que um ator imita uma pessoa, o autor simula as situações que descreve. E da mesma forma, enquanto um excelente ator possa emprestar sua presença e individualidade aos personagens que atua e torná-los fortes, também um excelente autor pode imprimir a força de sua personalidade em suas estórias. Mas este é apenas um dos perfis de arte representativa. Na atuação, o mestre Konstantin Stanislavski (1863-1938) louvou Maria Yermolova (1853-1928), Sarah Bernhardt (1844-1923) e Eleonora Duse (1858-1924) como as melhores atrizes de seu tempo. Yermolova e Bernhardt eram notórias pelas personalidades marcantes que mostravam com suas personagens.


A italiana Eleonora Duse, todavia, introspectiva e reservada, descrevia sua própria metodologia como "eliminar a si mesma". Após ver Sarah Bernhardt atuando em 1879, ela percebeu que enquanto a "Divina Sarah" era descrita como "interpretar Bernhardt", Duse começou a explorar aspectos psicológicos de suas personagens, modificando seus maneirismos e nuances para cada papel. Sua descrição para essa técnica é famosa: "Não usei tinta; maquiei-me moralmente".

Em "Um Ator Prepara-se" (1936), Stanislavski aborda a questão antiga (as relações entre contar e imitar, diegese e mimese, remontam a Platão e Aristóteles) ao descrever as formas de atuação: forçada, exagerada, abusiva, mecânica, a arte da representação, e experimentar o papel. Destas, apenas as duas últimas seriam arte. Em sua própria técnica, a de experimentar o papel, o ator representa um terceiro ser, uma mescla de seus próprios atributos com os de sua personagem. Na arte da representação - descrita por Diderot em seu "Paradoxo Sobre o Comediante" (1789) e exemplificada por Benoit-Constant Coquelin (1841-1909), o ator se concentra nas distinções.

Sem rejeitar a validade de outras aproximações, procuro seguir essa técnica, almejando algum dia que dois de meus textos possam ser atribuídos a dois autores diferentes - nenhum deles a mim.

7 de junho de 2010

O tempo no lado negro do arco-íris


The Dark Side of the Moon é um dos álbuns mais influentes da banda inglesa Pink Floyd. O oitavo álbum da banda, lançado em 10 de março de 1973, é seu álbum mais bem vendido nos EUA, com estimadas 15 milhões de unidades vendidas rendendo-lhe 15 discos de platina pela RIAA - Recording Industry Association of America. O álbum The Wall apresenta 23 discos de platina mas é um álbum duplo, significando na verdade 11,5 milhões de unidades vendidas. Tendo Syd Barrett deixado a banda em 1968, o álbum contava com a formação de David Gilmour, Nick Mason, Roger Waters e Richard Wright, com Waters respondendo pelas letras. Na gravação trabalhou o engenheiro de áudio Alan Parsons, que ganharia tanta notoriedade quanto os membros da banda após o sucesso do álbum.

O título do álbum faz alusão ao lunatismo, e seus temas envolvem fatores que podem levar à loucura, como conflito, ganância, morte, e a passagem do tempo, melhor representada pela quarta música, "Time", cuja letra eu traduzo aqui:

Tique-taqueando embora os momentos que fazem um dia enfadonho
Você despedaça e desperdiça as horas de uma maneira desastrada
Matando tempo em um pedaço de terra na sua cidade natal
Esperando por alguém ou por algo para mostrar-lhe o caminho

Cansado de jazer sob o brilho do sol, ficar em casa para observar a chuva
Você é jovem e a vida é longa e há tempo para matar hoje
E então um dia você percebe dez anos ficaram atrás de você
Ninguém lhe disse quando correr, você perdeu o tiro de largada

E você corre e corre para tentar alcançar o sol, mas está afundando
E correndo ao redor para erguer-se atrás de você de novo
O sol é o mesmo de certa maneira, mas você está mais velho
E com fôlego mais curto e um dia mais próximo da morte

Cada ano está ficando mais curto, nunca parece encontrar o tempo
Planos que ou dão em nada ou meia página de linhas rabiscadas
Aguentando em desespero silencioso é o jeito inglês
O tempo se foi, a música terminou, achei que tinha algo mais a dizer


Por volta do ano de 1994, surgiu na Internet o rumor de que o álbum havia sido feito propositalmente para acompanhar as cenas do filme "O Mágico de Oz" de 1939. O filme, dirigido por Victor Fleming e estrelado por Judy Garland, é uma adaptação da obra "O Maravilhoso Mágico de Oz", de Lyman Frank Baum (1856-1919), publicada originalmente em 1900. A estória narra as aventuras de Dorothy e seu cãozinho após a casa onde estavam ser arrastada por um furacão para a terra fantástica de Oz. Dorothy buscam o Mágico de Oz para retornar para casa, e são acompanhados por um leão covarde, um espantalho e um lenhador de lata, cada um com seus próprios pedidos para o Mágico e todos com incrível disposição para dançar e cantar.

O filme compartilha algo da iniciativa de Baum de remover das estórias infantis a violência e o romance, mas os acontecimentos são apenas vagamente baseados nos do livro. A estória do filme difere pesadamente da original, as diferenças mais notáveis sendo que no filme Dorothy é muito mais vulnerável e delicada, duas bruxas boas viram uma, a malvada sobrevivente torna-se muito mais importante, e inventa o que talvez seja o ícone mais poderoso associado ao universo de Oz, os sapatinhos de rubi - que são de prata no livro. A música tema do filme, Over the Rainbow, cantada por Judy Garland, ganhou o Oscar de Melhor Música, foi considerada a música do século em lista da RIAA, e do American Film Institute.

A teoria de combinação das duas obras recebeu o nome de Dark Side of the Rainbow ou Dark Side of Oz ("Lado Negro do Arco-Íris" ou "Lado Negro de Oz"). A teoria versa que se a reprodução do álbum for iniciada exatamente quando o Leão da MGM dá o terceiro rugido antes do filme começar, a estrutura e mesmo teor das músicas do álbum terá associação com as cenas do filme. Desde que a teoria começou a circular, várias pessoas dedicaram-se a fazer a sincronia para procurar e listar coincidências. Algumas delas são tão notáveis que sozinhas podem ser suficientes para convencer que a teoria tem sentido; mas o volume de coincidências - ainda que tendenciosas - certamente contribui. Apesar de os proprietários dos direitos terem removido os melhores vídeos da Internet, ainda há alguns remanescentes. Recomendo também o artigo da Wikipédia, e o excelente artigo do blog de Igor Natusch que se aprofunda em algumas das maiores coincidências.

Os membros do Pink Floyd negaram qualquer influência do filme na criação do álbum, com Roger Waters dizendo que os rumores são "divertidos". A correlação percebida entre álbum e filme é apontada como um exemplo de sincronicidade, uma teoria que discutirei em ocasião oportuna.

4 de junho de 2010

Náufragos no rio do tempo


 Certamente todos algum dia fomos iludidos pela nossa própria noção de tempo, chegando atrasado ou adiantado a compromissos, perdendo o ônibus ou metrô, perdendo a hora de um programa preferido, dando parabéns a um aniversariante no dia errado. Métodos de marcação de tempo figuram entre as invenções mais antigas da humanidade, e estão entre as poucas invenções que temos como essenciais a ponto de carregá-las conosco todos os dias, amarrados a nossos pulsos, e a ponto de dispor de forma bem visível em nossos lares e fachadas. A tecnologia respondeu à necessidade cada vez maior da sociedade de saber que horas são, criando toda uma indústria de administração de tempo. Para muitos, é essencial saber a hora. E para muitos, é impossível sem ajuda.

O nosso "relógio biológico", os ritmos internos de nosso corpo - junto com os ritmos de diversas formas de vida - são estudados por um ramo jovem da biologia chamado cronobiologia. Apesar de estudos nesse sentido datarem de séculos atrás, foram os estudos do cientista romeno Franz Halberg que o iniciaram como campo de estudo formal, consolidado em 1960 pelo simpósio chamado "Relógios Biológicos" no laboratório Cold Spring Harbor, estado de Nova Iorque.

Segundo a cronobiologia, nosso corpo apresenta três ritmos: ultradiano, circadiano e infradiano. Curiosamente contrariando o radical, o ritmo ultradiano refere-se a ocorrências contidas dentro de um dia, como a alimentação e excreção, o controle da respiração e temperatura e a atividade cardíaca e hormonal. Por sua vez, o ritmo infradiano refere-se a ocorrências que ultrapassem um dia, como o ciclo menstrual.

O ritmo circadiano serve de base para nosso controle de tempo, e controla as ocorrências dentro do período aproximado de 24 horas (daí o nome, que vem de "cerca de um dia"), sendo a principal o sono. Esse ritmo é controlado pelo núcleo supraquiasmático (por estar sobre o quiasma ótico), uma região do cérebro do tamanho de um grão de arroz. Ele faz esse controle do dia conforme estímulos externos chamados zeitgebers: "doadores de tempo", incluindo temperatura, interações sociais e alimentação, mas a iluminação sendo o principal. Assim, o dia biológico acelera ou retarda conforme percebe esses estímulos externos.

Descrito o que é um ritmo circadiano, podemos tratar dos transtornos relacionados. O mais conhecido é o jet lag ("atraso de jato") ou dessincronose ocorre quando uma pessoa viaja muito rápido para outra parte do mundo com grande diferença de fuso horário, causando dor de cabeça, sono irregular, cansaço e problemas intestinais. Outros distúrbios de sono existem: o de trabalho em turnos ocorre quando uma pessoa muda frequentemente o horário de dormir; os de sono atrasado e adiantado, que faz o período de sono ocorrer fora do horário de sono normal; ou o não-24 ou corrida livre, em que a pessoa dorme conforme um dia próprio que não tem 24 horas. Transtorno também relacionado ao ritmo circadiano é o afetivo sazonal, ou depressão de inverno, que faz as pessoas ficarem abatidas no inverno e que muito raramente pode evoluir para um transtorno mais sério.

O sentido ou senso de tempo, ou seja, a capacidade de determinar-se temporalmente, inclui outros fatores além do ritmo circadiano. A capacidade de definir o tempo pode ser prejudicada por outras doenças que não afetam o ritmo circadiano propriamente, mas que afetem a percepção, a identidade, o equilíbrio emocional ou mesmo a química cerebral de modo generalizado. Alucinações como as manifestadas na esquizofrenia podem ser de natureza cronoceptiva, ou seja, relacionada à percepção do tempo. Há várias doenças que atacam os centros cognitivos do cérebro, incluindo a memória e a percepção do tempo, como a Doença de Huntington e o Mal de Parkinson, que começam com movimentos involuntários do corpo (coreia em Huntington e tremores em Parkinson), e podem levar à demência. A forma mais comum de demência, o Mal de Alzheimer, é caracterizada e diagnosticada pela deterioração cognitiva. Vale mencionar também o controverso transtorno de déficit de atenção com hiperatividade que apresenta sintomas de inquietação que podem denotar a deficiência na percepção de tempo.

Concluo tratando da perturbação ao senso de tempo causada pelas drogas. Substâncias psicoativas podem ser divididas entre estimulantes e depressantes, se respectivamente aumentam e diminuem as atividades do sistema nervoso, e alucinógenas, se causam efeitos anormais ao sistema nervoso. As estimulantes incluem a cafeína, nicotina, anfetaminas, o ecstasy, e a cocaína. As depressantes incluem o álcool, barbitúricos, e opiatos como a morfina e codeína. As alucinógenas incluem a mescalina ou peiote, a ayahuasca ou Santo Daime, o LSD, e a maconha ou haxixe. Cogita-se que por agirem sobre a atividade de neurotransmissores como a dopamina e a adrenalina, substâncias estimulantes podem causar a sensação de tempo contraído ou acelerado, enquanto que substâncias depressantes podem causar o oposto, ou seja, a sensação de tempo dilatado ou retardado. É descrito que substâncias alucinógenas podem realmente subverter o senso de tempo por completo, e imagino que sensações possíveis incluam a de estar alheio ao tempo, experimentar tempos paralelos, ou a de correr em sentido oposto ao tempo.

Às vezes amaldiçoamos nosso barco no rio do tempo por não podermos acelerá-lo, pará-lo ou mudá-lo de direção; mas deveríamos dar graças por ele não estar fazendo água.

2 de junho de 2010

O conto "Espelhos da Alma"


     O burguês, de maneiras que poderiam ser descritas como um tanto afetadas, deixou cair uma pitada de sal em um pequeno frasco, tampou com o dedo, agitou com vigor e colocou o frasco contra o sol. O líquido assumiu uma coloração sanguínea. Ouvindo o barulho de passos se aproximando, derramou o líquido rapidamente, guardou o frasco, ajeitou seu colete e casaco, e voltou sua atenção ao prisioneiro diante de si. Disse a ele:
      - Olá? Olá?
       Divertiu-se agitando um lenço delicado no rosto do aprisionado. Este infeliz homem, maltrapilho e imundo, demonstrava na face insanidade tanto de corpo como de espírito. Pois, não obstante tais condições ou o fato de estar agrilhoado firmemente ao chão enquanto era tratado como objeto de estudo, sua expressão era de indiferença e apatia, observando um ponto fixo muito além das paredes que o cercavam.
      Juntou-se ao burguês um senhor de porte generoso – obtida graças a uma vida nada generosa – e feições orgulhosas, que vestidas com cetim e veludo eram mais do que suficientes para fazer dele um homem da nobreza, mas não de nobreza; um nobre, mas não apenas nobre. Este senhor parecia bastante incomodado com o lugar, que nada era além de uma cela quadrada com paredes feitas de grandes blocos de pedra, perturbada apenas por alguns grilhões pendendo das paredes, a pesada porta que os trouxera até ali, e uma janela com grades, bloqueada com panos.
      - Parece-me, senhor Quintino, que seu brinquedo está quebrado. É como um relógio sem engrenagens – disse o burguês.
      - Não é, de fato, assim, Borges. É seu temperamento; fala apenas quando quer – disse o nobre.
      - E o que fala? Que frases de insofismável sabedoria dizem ele pronunciar?
      - Você está sendo inoportuno, Borges. Eu lhe trouxe aqui por seu pai ter afirmado que teria capacidade de ver o que não vejo.
      - O que seria isto? – disse o burguês, franzindo o cenho com genuíno interesse.
      - Este homem tem algo nos olhos. É um brilho estranho que fala por ele, quando não abre a boca.
      - Agora posso eu interpretar brilhos nos olhos?
      - Não é esta, a sua arte?


"Espelhos da Alma" é o primeiro conto do livro. Os contos foram ordenados cronologicamente conforme a época de suas ambientações, e esta estória é a que se passa no passado mais distante. A ambientação, ainda que propositalmente imprecisa, é uma das celas das masmorras de um castelo na Europa, e se passa em algum momento da Renascença.

Este momento histórico, marcado pelos renovados impulsos em diversas áreas do conhecimento humano, é naturalmente propício para o tema do conto, que aborda a condição de "homem de ciência", o sábio ou escolar do passado, e sua relação com o leigo, o homem médio, o não esclarecido. Para tanto, a estória apresenta três personagens em uma relação aparentemente dialética: o burguês Borges, praticante de uma ciência peculiar; o nobre Quintino, que pretende usar tal ciência para saber mais sobre o terceiro personagem, seu prisioneiro sem nome. O conto faz menção à ultrapassada teoria humoral.

Ao antecipar uma antologia de contos relacionados ao tempo, tive a ideia de fazer uma estória formada por estórias menores que atravessassem as épocas, de um passado remoto até nossos dias. A inspiração era a  música Sympathy For The Devil, dos Rolling Stones. A música, influenciada pela obra O Mestre e Margarita de Mikhail Bulgakov - tendo como uma das fontes a lenda de Fausto - explora a visita do Diabo à Terra em diversas ocasiões de discórdia. Eu então escrevi uma estória começando por um ritual medieval que prendeu o Diabo em um corpo físico, então fadado a vagar pela Terra conseguindo apenas se comunicar através de perguntas. Mas através desses questionamentos, ele ainda era capaz de instalar dúvida e insegurança na humanidade. A estória seguia o vagante questionador em cenas de discórdia através das épocas, passando pela Renascença até a Alemanha Nazista e concluindo no Diabo explicando sua natureza para Oppenheimer em um sítio de teste, antes dele saltar em uma Boca do Inferno criada pela bomba atômica. O nome da estória seria "O Jogo do Diabo".

Não consegui desenvolver a ideia a contento, e o resultado final não ficou bom. Ainda assim, gostei muito do episódio da Renascença e experimentei extrai-lo e adaptá-lo para ficar autossuficiente. Consegui manter a essência e as qualidades que havia notado, e o resultado foi este conto. Talvez utilize o restante do conto original em outro projeto que mencionarei oportunamente.

Deixei suspense sobre a natureza da experimentação de Borges, mas basta dizer que sua inspiração é um uso muito simples e curioso de fenoftaleína, integrante de kits de química para crianças.

O título, dado o objeto da arte de Borges, veio rapidamente. A notoriedade da expressão original permitiu abreviá-la em sua palavras finais, visando com a elipse torná-la mais evocativa.

1 de junho de 2010

Aquele amigo que escreve

Tendo discorrido anteriormente sobre a validade de entregar um texto para outros lerem para incrementar processo de revisão com uma visão externa, resolvi tratar de um fenômeno curioso que ocorre quando se aprecia uma obra artística qualquer, neste caso especificamente na produção de textos.

Uma pessoa interpreta o mundo ao seu redor conforme um modelo intrincado composto não apenas de sua capacidade intelectual e cultura, mas também de seu perfil emocional e moral. Discute-se até hoje quanto desse modelo é influenciado pela formação educacional, e por fatores sócio-econômicos, psicológicos e mesmo biológicos, mas é seguro dizer que todos estes fatores, em algum nível, contribuem para a forma como vê o mundo, e subsequentemente como faz julgamentos críticos.

Ao ter diante de si um texto, um leitor terá a tendência de interpretá-lo e valorá-lo conforme noções e convicções próprias. O texto lhe oferece elementos estéticos e lógicos mesclados, não necessariamente de forma equilibrada. Ele se sentirá satisfeito com o texto não por uma qualidade intrínseca do escrito, mas por atingir as expectativas estéticas e lógicas próprias do leitor. Críticos estabelecem critérios e ideologias para orientar suas interpretações, e estabelecem virtudes textuais como desejáveis para mensurar a qualidade de um texto; mas, como o mercado editorial moderno prova, a qualidade apregoada a um texto por um crítico erudito não quer dizer que o texto não irá agradar a milhões de pessoas.

Chegamos então à massificação da cultura: a transmissão de valores através das mídias populares, de forma atraente e desejável, e em cadeias e séries repetitivas, que já ocorre há gerações e molda a cultura individual desde a mais tenra idade até a vida adulta. Uma das características mais estarrecedoras de nossa sociedade é a de os indivíduos assimilarem e expressarem como sendo seus valores que muitas vezes não são sequer adequados às suas realidades. A imposição de valores é fenômeno que ocorre desde o surgimento da humanidade; mas em nosso nível de civilização, o que assombra é pessoas que sofrem isso sem saber - talvez sem mesmo achar possível.

As expectativas de um leitor são definidas pelos seus valores, que podem ter sido influenciados pela massificação. O exemplo que pretendo dar, que justifica essa explicação anterior, é o bestseller. Os publicadores listam os livros mais vendidos, oferecendo a razão subjacente de, se são mais vendidos, é porque muita gente os considera boa leitura; e se muitos o consideram assim, logo devem ser bons para a maioria das pessoas. A atribuição de qualidade à obra, assim, vem do fato de estar sendo bem vendido, o que é falacioso, pois não há nexo causal. O livro pode estar sendo bem vendido por uma série de fatores que vão das conexões pessoais do autor, ao processo editorial e à propaganda, que não têm relação com o texto. Este, por sua vez, tem de ter sido considerado vendável, ou seja, passou por uma avaliação para saber se irá atender às expectativas da maioria dos leitores. A mesma maioria influenciada pela cultura de massa, ou seja, o texto vendável visa satisfazer a cultura de massa.



O reconhecimento prévio de um texto ou autor é outro fator determinante das expectativas de um leitor. De forma semelhante a um bestseller, um autor ou texto renomado adquire, por força do renome, qualidade. Diferente do bestseller, é certo que um texto continuamente renomado por décadas ou séculos tem genuíno valor; a questão é que esse valor não é necessariamente a qualidade buscada pelo leitor de hoje. Um texto pode ser renomado por seu valor acadêmico, como revolucionário, inaugurador de um estilo ou escola literária ou por ter influenciado autores, ou por seu valor histórico, documentando fatos e personalidades de sua época. Para o leitor médio de hoje, o texto ou autor pode ser engraçado, estranho, ou, não raro, maçante, e em decorrência, não ser satisfatório. Mas pode não estar procurando isso: enquanto um bestseller permite ao leitor integrar a maioria, ler e apreciar (ou dizer apreciar) um texto renomado permite a ele alegar erudição.



O leitor não conhece o autor do bestseller pessoalmente. Ele o conhece através da foto na orelha do livro, de entrevistas que lê e do próprio texto. Também não conhece o autor renomado, falecido há décadas ou séculos. O que dizer do autor com que se relacione? Com relação a ele, é possível que sofra outro tipo de influência, que nasce exatamente da familiaridade do relacionamento. O leitor então conhece a forma da pessoa falar e agir, seu comportamento, suas opiniões e ideias, suas crenças, pode inclusive ter tido acesso a aspectos íntimos da vida do autor, como seu relacionamento com a família e sua vida amorosa e sexual. Em vez das considerações sobre a vida de um autor emitidas por um biógrafo ou pelo próprio autor em uma entrevista, o leitor formou seu próprio julgamento sobre ele. A leitura do texto é marcadamente diferente, com o leitor enxergando o autor no tema, na ambientação, na linguagem, nos diálogos, nas personagens.

A psicologia dá a esta inclinação ou tendenciosidade o nome apropriado de viés, no inglês bias. Neste caso trata-se do viés cognitivo: a tendência de fazer julgamentos baseados em preconcepções ou com uma motivação prévia em vez de baseados nas evidências ou fatos como se apresentam. A pessoa compra o bestseller porque todo mundo está comprando, e na leitura se deixa iludir por isso e se diz satisfeito. Força-se a ler um texto antigo e reconhecido, mesmo o considerando enfadonho ou sequer o compreendendo.

O leitor pode sequer levar a sério o texto do autor que conheça, não tendo a disposição para apreciá-lo como se apresenta. Por um lado, pode manifestar-se satisfeito sem pretender criticar o texto, procurando não prejudicar o relacionamento; por outro lado, pode contaminar a leitura com seus preconceitos e deixar de ver a qualidade - ou a falta de qualidade - do texto.

Convido o colega escritor a imaginar uma experiência, em que entregue a um conhecido seu melhor texto, junto com um texto obscuro de um escritor célebre, sem identificá-los. Peça então ao conhecido lê-los e dizer qual é o texto do escritor célebre. Talvez tenha a surpresa de seu texto ser elevado a clássico.