Tendo discorrido anteriormente sobre a validade de entregar um texto para outros lerem para incrementar processo de revisão com uma visão externa, resolvi tratar de um fenômeno curioso que ocorre quando se aprecia uma obra artística qualquer, neste caso especificamente na produção de textos.
Uma pessoa interpreta o mundo ao seu redor conforme um modelo intrincado composto não apenas de sua capacidade intelectual e cultura, mas também de seu perfil emocional e moral. Discute-se até hoje quanto desse modelo é influenciado pela formação educacional, e por fatores sócio-econômicos, psicológicos e mesmo biológicos, mas é seguro dizer que todos estes fatores, em algum nível, contribuem para a forma como vê o mundo, e subsequentemente como faz julgamentos críticos.
Ao ter diante de si um texto, um leitor terá a tendência de interpretá-lo e valorá-lo conforme noções e convicções próprias. O texto lhe oferece elementos estéticos e lógicos mesclados, não necessariamente de forma equilibrada. Ele se sentirá satisfeito com o texto não por uma qualidade intrínseca do escrito, mas por atingir as expectativas estéticas e lógicas próprias do leitor. Críticos estabelecem critérios e ideologias para orientar suas interpretações, e estabelecem virtudes textuais como desejáveis para mensurar a qualidade de um texto; mas, como o mercado editorial moderno prova, a qualidade apregoada a um texto por um crítico erudito não quer dizer que o texto não irá agradar a milhões de pessoas.
Chegamos então à massificação da cultura: a transmissão de valores através das mídias populares, de forma atraente e desejável, e em cadeias e séries repetitivas, que já ocorre há gerações e molda a cultura individual desde a mais tenra idade até a vida adulta. Uma das características mais estarrecedoras de nossa sociedade é a de os indivíduos assimilarem e expressarem como sendo seus valores que muitas vezes não são sequer adequados às suas realidades. A imposição de valores é fenômeno que ocorre desde o surgimento da humanidade; mas em nosso nível de civilização, o que assombra é pessoas que sofrem isso sem saber - talvez sem mesmo achar possível.
As expectativas de um leitor são definidas pelos seus valores, que podem ter sido influenciados pela massificação. O exemplo que pretendo dar, que justifica essa explicação anterior, é o bestseller. Os publicadores listam os livros mais vendidos, oferecendo a razão subjacente de, se são mais vendidos, é porque muita gente os considera boa leitura; e se muitos o consideram assim, logo devem ser bons para a maioria das pessoas. A atribuição de qualidade à obra, assim, vem do fato de estar sendo bem vendido, o que é falacioso, pois não há nexo causal. O livro pode estar sendo bem vendido por uma série de fatores que vão das conexões pessoais do autor, ao processo editorial e à propaganda, que não têm relação com o texto. Este, por sua vez, tem de ter sido considerado vendável, ou seja, passou por uma avaliação para saber se irá atender às expectativas da maioria dos leitores. A mesma maioria influenciada pela cultura de massa, ou seja, o texto vendável visa satisfazer a cultura de massa.
O reconhecimento prévio de um texto ou autor é outro fator determinante das expectativas de um leitor. De forma semelhante a um bestseller, um autor ou texto renomado adquire, por força do renome, qualidade. Diferente do bestseller, é certo que um texto continuamente renomado por décadas ou séculos tem genuíno valor; a questão é que esse valor não é necessariamente a qualidade buscada pelo leitor de hoje. Um texto pode ser renomado por seu valor acadêmico, como revolucionário, inaugurador de um estilo ou escola literária ou por ter influenciado autores, ou por seu valor histórico, documentando fatos e personalidades de sua época. Para o leitor médio de hoje, o texto ou autor pode ser engraçado, estranho, ou, não raro, maçante, e em decorrência, não ser satisfatório. Mas pode não estar procurando isso: enquanto um bestseller permite ao leitor integrar a maioria, ler e apreciar (ou dizer apreciar) um texto renomado permite a ele alegar erudição.
O leitor não conhece o autor do bestseller pessoalmente. Ele o conhece através da foto na orelha do livro, de entrevistas que lê e do próprio texto. Também não conhece o autor renomado, falecido há décadas ou séculos. O que dizer do autor com que se relacione? Com relação a ele, é possível que sofra outro tipo de influência, que nasce exatamente da familiaridade do relacionamento. O leitor então conhece a forma da pessoa falar e agir, seu comportamento, suas opiniões e ideias, suas crenças, pode inclusive ter tido acesso a aspectos íntimos da vida do autor, como seu relacionamento com a família e sua vida amorosa e sexual. Em vez das considerações sobre a vida de um autor emitidas por um biógrafo ou pelo próprio autor em uma entrevista, o leitor formou seu próprio julgamento sobre ele. A leitura do texto é marcadamente diferente, com o leitor enxergando o autor no tema, na ambientação, na linguagem, nos diálogos, nas personagens.
A psicologia dá a esta inclinação ou tendenciosidade o nome apropriado de viés, no inglês bias. Neste caso trata-se do viés cognitivo: a tendência de fazer julgamentos baseados em preconcepções ou com uma motivação prévia em vez de baseados nas evidências ou fatos como se apresentam. A pessoa compra o bestseller porque todo mundo está comprando, e na leitura se deixa iludir por isso e se diz satisfeito. Força-se a ler um texto antigo e reconhecido, mesmo o considerando enfadonho ou sequer o compreendendo.
O leitor pode sequer levar a sério o texto do autor que conheça, não tendo a disposição para apreciá-lo como se apresenta. Por um lado, pode manifestar-se satisfeito sem pretender criticar o texto, procurando não prejudicar o relacionamento; por outro lado, pode contaminar a leitura com seus preconceitos e deixar de ver a qualidade - ou a falta de qualidade - do texto.
Convido o colega escritor a imaginar uma experiência, em que entregue a um conhecido seu melhor texto, junto com um texto obscuro de um escritor célebre, sem identificá-los. Peça então ao conhecido lê-los e dizer qual é o texto do escritor célebre. Talvez tenha a surpresa de seu texto ser elevado a clássico.
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