O burguês, de maneiras que poderiam ser descritas como um tanto afetadas, deixou cair uma pitada de sal em um pequeno frasco, tampou com o dedo, agitou com vigor e colocou o frasco contra o sol. O líquido assumiu uma coloração sanguínea. Ouvindo o barulho de passos se aproximando, derramou o líquido rapidamente, guardou o frasco, ajeitou seu colete e casaco, e voltou sua atenção ao prisioneiro diante de si. Disse a ele:
- Olá? Olá?
Divertiu-se agitando um lenço delicado no rosto do aprisionado. Este infeliz homem, maltrapilho e imundo, demonstrava na face insanidade tanto de corpo como de espírito. Pois, não obstante tais condições ou o fato de estar agrilhoado firmemente ao chão enquanto era tratado como objeto de estudo, sua expressão era de indiferença e apatia, observando um ponto fixo muito além das paredes que o cercavam.
Juntou-se ao burguês um senhor de porte generoso – obtida graças a uma vida nada generosa – e feições orgulhosas, que vestidas com cetim e veludo eram mais do que suficientes para fazer dele um homem da nobreza, mas não de nobreza; um nobre, mas não apenas nobre. Este senhor parecia bastante incomodado com o lugar, que nada era além de uma cela quadrada com paredes feitas de grandes blocos de pedra, perturbada apenas por alguns grilhões pendendo das paredes, a pesada porta que os trouxera até ali, e uma janela com grades, bloqueada com panos.
- Parece-me, senhor Quintino, que seu brinquedo está quebrado. É como um relógio sem engrenagens – disse o burguês.
- Não é, de fato, assim, Borges. É seu temperamento; fala apenas quando quer – disse o nobre.
- E o que fala? Que frases de insofismável sabedoria dizem ele pronunciar?
- Você está sendo inoportuno, Borges. Eu lhe trouxe aqui por seu pai ter afirmado que teria capacidade de ver o que não vejo.
- O que seria isto? – disse o burguês, franzindo o cenho com genuíno interesse.
- Este homem tem algo nos olhos. É um brilho estranho que fala por ele, quando não abre a boca.
- Agora posso eu interpretar brilhos nos olhos?
- Não é esta, a sua arte?
Divertiu-se agitando um lenço delicado no rosto do aprisionado. Este infeliz homem, maltrapilho e imundo, demonstrava na face insanidade tanto de corpo como de espírito. Pois, não obstante tais condições ou o fato de estar agrilhoado firmemente ao chão enquanto era tratado como objeto de estudo, sua expressão era de indiferença e apatia, observando um ponto fixo muito além das paredes que o cercavam.
Juntou-se ao burguês um senhor de porte generoso – obtida graças a uma vida nada generosa – e feições orgulhosas, que vestidas com cetim e veludo eram mais do que suficientes para fazer dele um homem da nobreza, mas não de nobreza; um nobre, mas não apenas nobre. Este senhor parecia bastante incomodado com o lugar, que nada era além de uma cela quadrada com paredes feitas de grandes blocos de pedra, perturbada apenas por alguns grilhões pendendo das paredes, a pesada porta que os trouxera até ali, e uma janela com grades, bloqueada com panos.
- Parece-me, senhor Quintino, que seu brinquedo está quebrado. É como um relógio sem engrenagens – disse o burguês.
- Não é, de fato, assim, Borges. É seu temperamento; fala apenas quando quer – disse o nobre.
- E o que fala? Que frases de insofismável sabedoria dizem ele pronunciar?
- Você está sendo inoportuno, Borges. Eu lhe trouxe aqui por seu pai ter afirmado que teria capacidade de ver o que não vejo.
- O que seria isto? – disse o burguês, franzindo o cenho com genuíno interesse.
- Este homem tem algo nos olhos. É um brilho estranho que fala por ele, quando não abre a boca.
- Agora posso eu interpretar brilhos nos olhos?
- Não é esta, a sua arte?
"Espelhos da Alma" é o primeiro conto do livro. Os contos foram ordenados cronologicamente conforme a época de suas ambientações, e esta estória é a que se passa no passado mais distante. A ambientação, ainda que propositalmente imprecisa, é uma das celas das masmorras de um castelo na Europa, e se passa em algum momento da Renascença.
Este momento histórico, marcado pelos renovados impulsos em diversas áreas do conhecimento humano, é naturalmente propício para o tema do conto, que aborda a condição de "homem de ciência", o sábio ou escolar do passado, e sua relação com o leigo, o homem médio, o não esclarecido. Para tanto, a estória apresenta três personagens em uma relação aparentemente dialética: o burguês Borges, praticante de uma ciência peculiar; o nobre Quintino, que pretende usar tal ciência para saber mais sobre o terceiro personagem, seu prisioneiro sem nome. O conto faz menção à ultrapassada teoria humoral.
Ao antecipar uma antologia de contos relacionados ao tempo, tive a ideia de fazer uma estória formada por estórias menores que atravessassem as épocas, de um passado remoto até nossos dias. A inspiração era a música Sympathy For The Devil, dos Rolling Stones. A música, influenciada pela obra O Mestre e Margarita de Mikhail Bulgakov - tendo como uma das fontes a lenda de Fausto - explora a visita do Diabo à Terra em diversas ocasiões de discórdia. Eu então escrevi uma estória começando por um ritual medieval que prendeu o Diabo em um corpo físico, então fadado a vagar pela Terra conseguindo apenas se comunicar através de perguntas. Mas através desses questionamentos, ele ainda era capaz de instalar dúvida e insegurança na humanidade. A estória seguia o vagante questionador em cenas de discórdia através das épocas, passando pela Renascença até a Alemanha Nazista e concluindo no Diabo explicando sua natureza para Oppenheimer em um sítio de teste, antes dele saltar em uma Boca do Inferno criada pela bomba atômica. O nome da estória seria "O Jogo do Diabo".
Não consegui desenvolver a ideia a contento, e o resultado final não ficou bom. Ainda assim, gostei muito do episódio da Renascença e experimentei extrai-lo e adaptá-lo para ficar autossuficiente. Consegui manter a essência e as qualidades que havia notado, e o resultado foi este conto. Talvez utilize o restante do conto original em outro projeto que mencionarei oportunamente.
Deixei suspense sobre a natureza da experimentação de Borges, mas basta dizer que sua inspiração é um uso muito simples e curioso de fenoftaleína, integrante de kits de química para crianças.
O título, dado o objeto da arte de Borges, veio rapidamente. A notoriedade da expressão original permitiu abreviá-la em sua palavras finais, visando com a elipse torná-la mais evocativa.
1 comentários:
Interessante! Vou esperar o conto inteiro no livro :)
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